A viagem de uma tarde de Outono

Há nuvens muito carregadas que esperam a primeira oportunidade para se imolarem por sobre a cidade em bombas de chuva que batendo no pára-brisas quase abafam por completo qualquer outro som. E só a consulta do relógio me faz acreditar que esta escuridão ainda está longe de ser um sinal do entardecer.
Em competição com o irrequieto bater da chuva, escuto a guitarra com a exclusiva e muito lusa marca de fado, em fusão perfeita com a voz de António Zambujo, que num dia assim, e quase que por magia, de Alentejo e pelo eco dolente da planície, me embalam neste "caminhar" anónimo pelas ruas de Lisboa.
E bebo das palavras, a poesia, prefácio perfeito desse instante em que o teu olhar, que até é cúmplice do sul, me dará o norte nesse vagabundo errar pelas calçadas desenhadas a preto e branco da cidade irmã do Tejo.
O olhar de um beijo.
O olhar que eterniza um tão pequeno instante marcado no calendário das nossas vidas.
Ao deixar-te, e no regresso às palavras cantadas por Zambujo, é de saudade o gosto com que rima a poesia, esse irracional e desenho das letras a que a guitarra e a voz continuam a acrescentar verdade.
A chuva parou finalmente.
Comprovo-o desde a oval e minúscula janela do avião que se prepara para me levar até à cidade eterna, Roma.
Agora sim, já é noite, quando o "Eça de Queiroz" dá a volta e me despeço da ponte e do Cristo Rei fazendo-me voar por sobre o campo e todas as serras, embalando-me num sonho que me trará por momentos a tão breve ilusão da morte das saudades, e me trará as lembranças de uma triste tarde de Outono em que pela cidade te procurei, e encontrando-te… acho que me encontrei. 

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