De portas fechadas

Na altura em que Abril abriu as portas e deixou entrar a liberdade existiram portas que simultaneamente se fecharam, e falo de uma forma objectiva e sem quaisquer conotações políticas.
É que nos entrou a febre das discotecas e dos pub’s e desenvolveu-se em nós um especial estímulo libertador de adrenalina pelo facto de tocarmos uma campainha e alguém nos vir abrir a porta para que pudéssemos tomar um copo.
Em Vila Viçosa, onde os cafés e as tascas eram de porta aberta, diria mesmo, escancarada, num impulso de modernidade, alguém se lembrou de comprar a tasca ao Sr. Ai-ai (o peso das alcunhas é tal que nem me recordo do efectivo nome da criatura), retirar o ramo de louro e o garrafão vazio que existiam sempre na fachada, varrer a serradura que se espalhava pelo piso em dias de chuva, trancando a porta e criando um pub que baptizou de “A colmeia”.
Ficava na Rua das Vaqueiras e a sua inauguração teve ares de escândalo na terra.
O que se passava dentro de semelhante “antro” passou a ser objecto de especulação e da infinita imaginação da vizinhança que nunca perde tempo em arquitectar as mais depravadas cenas no âmbito afectivo-sexual, ao jeito de perfeitos realizadores de filmes pornográficos.
Da vizinhança fazia parte a minha prima Cizita, catequista das catequistas e verdadeiramente uma santa mulher, que não perdeu tempo a reconhecer que o diabo se tinha instalado muito perto do seu domicílio e que a existência daquela porta fechada era um claro sinal de que o ano 2000 já estava próximo e que inevitavelmente traria com ele o fim do mundo.
Efectivamente, pouco ou nada de especial se passava lá dentro. Para lá da emoção do toque da campainha, só há mesmo a registar a existência de algo que era objecto da nossa afeição e que nos punha completamente fora de nós: uma bola de espelhos.
Uma bola de espelhos era o top da modernidade e tinha esse efeito catalisador de acelerar a nossa transformação automática em Travolta’s logo que se apagavam as luzes e o artefacto começava a fazer alguns efeitos de desdobramento dos focos coloridos que nele faziam incidir.
Era a loucura.
Era então frequente anunciar-se o sucesso de uma festa de aniversário com base no facto de alguém ter disponibilizado uma bola de espelhos para pendurar no tecto da garagem e dar ao ambiente um ar de discoteca semelhante à que diariamente víamos na telenovela, no Dallas ou no Barco do Amor.
Depois passávamos a tarde a beber Tónica Schweppes e sentíamo-nos super importantes, modernos e, como todos os adolescentes de borbulhas no rosto, sentíamos esse gosto de estar a reforçar as fronteiras para a geração dos nossos pais que só tinham frequentado os bailes das Sociedades Recreativas… e sem direito a bolas de espelho.
As novas gerações abriram as portas dos bares e os clientes trazem os copos para debaixo da minha janela, um verdadeiro corner nas docas secas de Vila Viçosa onde por vezes dou por mim a barafustar por não me deixarem dormir.
Mas contenho-me.
Ainda estou novo demais para “Prima Cizita”, não acredito no Diabo, o ano 2000 já passou sem que o mundo tivesse acabado e não serei eu a deixar que a nova geração deixe de delimitar as fronteiras em relação à minha.
Mantenho-me acordado na cama e vou pensando e deixando correr as memórias à espera de adormecer embalado por elas e pelo efeito fantástico que ainda hoje aprecio de uma bola de espelhos.

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