A brincar fazendo o Natal

A cidade não perdeu o charme de Natal mas já não apresenta as longas filas de trânsito que eram tão típicas desta semana sempre que procurávamos o centro para fazer as compras.
A crise mudou definitivamente a face de Lisboa.
Passo pela Calouste Gulbenkian, pela Praça de Espanha e só mesmo na António Augusto de Aguiar e já a quinhentos metros do El Corte Ingles, paro para enfrentar depois uns breves cinco minutos de pára e arranca até ao infinito caracol (ao estilo do intestino de um dinossauro) que me dá acesso ao estacionamento.
Imprimi e tenho no bolso a carta escrita pelos meninos ao Pai Natal e, cumprindo as minhas funções de tio extremoso, começo as compras pelo piso dos brinquedos tentando encontrar os itens seleccionados a partir do catálogo.
Sem “GPS” e só por mim não consigo encontrar um brinquedo sequer naquele imenso mar de caixas coloridas.
Peço ajuda a uma assistente que deve ter vindo da Lapónia e deve ter estagiado durante alguns anos com o Pai Natal pois entende na perfeição a linguagem da carta que para mim está totalmente encriptada.
Decidida, leva-me directamente às prateleiras e acabo por conseguir metade do meu objectivo, a outra metade corresponde a brinquedos já esgotados.
É aí que eu ganho a tarde, quando me apercebo que posso circular livremente entre as prateleiras e escolher as alternativas.
Dispenso amavelmente e por momentos os serviços da minha “GPS Maria do Amparo” e prometo ir ter com ela à caixa um pouco mais tarde, depois da escolha devidamente realizada.
E então brinco eu, mirando, palpando e testando todos os bonecos, automóveis, aviões, pistas, “Legos”, puzzles e afins.
Talvez este seja um privilégio do Natal, o ter momentos em que despudoradamente e sem a censura norteada pela sensatez de terceiros, podemos soltar a criança que nunca morre e que para sempre vamos alimentando em nós.
Lembro-me do melhor brinquedo de Natal que recebi, foi uma ambulância a pilhas que andava sozinha, piscava, fazia “tinonin” e recuava sempre que embatia em algum obstáculo. Foi no Natal de 1973 e foi presente da empresa Baptista Russo onde o meu pai então trabalhava em Cabo Ruivo.
Do pior também me recordo: um par de pistolas. Foi algures por 1975 e oferta de alguém fora da família pois em casa nunca fomos grandes adeptos de pistolas, e armas em geral.
Vou brincando e vou instintivamente desfiando memórias desse tempo em que os presentes nos eram trazidos pelo Menino Jesus, em que os brinquedos eram poucos e perdiam quase sempre para a roupa que necessitávamos e era objecto de conversas tidas entre pais, avós e tios, e um tempo em que a minha avó escrevia sempre em envelopes que ainda hoje guardo: “O Menino Jesus da Avó Dade para o meu Quim”.
Já passaram muitos anos, mas o impacto desses anos nas nossas vidas nunca é muito grande se nós não desaprendermos de brincar e de ser meninos.
Demorei uma boa meia hora até regressar ao convívio da minha “Doutora Brinquedos” que simpaticamente elogia a minha escolha.
Também com o tempo que tive para brincar…
A “minha amiga” fica com os brinquedos e a fazer os embrulhos enquanto eu sigo para outros pisos em busca dos presentes para quem já não tem idade para escrever cartas ao Pai Natal… e em pleno uso da minha utilíssima Carta de Compras.
Recolho mais tarde os embrulhos todos e entrego-me à serpentina de betão que me devolve à noite de Lisboa que beneficia então de uns ténues borrifos de chuva.
Foi para mim um dia difícil mas cheira mais a Natal.
É que isto de ser Natal e nós não aproveitarmos para voltar a ser meninos nem que só por breves instantes, não dá mesmo com nada.

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