Uma noite e quase Natal

O rádio do carro embala-me num prenúncio de Lisboa projectando em contínuo a voz de Amália.
“Não é desgraça ser pobre…”
E pobre não é por certo quem assim num fim de tarde de Dezembro tem o privilégio de “mergulhar” na cidade já envolta nas coloridas luzes semeadas pelo Natal.
Vai lento o carro até ao Camões atrasando-me esse decisivo encontro com o poeta mas oferecendo-me a possibilidade de desfrutar de cada detalhe do caminho, e como brilha ao longe o Castelo quando se espreita assim de São Pedro de Alcântara.
Chego finalmente.
E desço o Chiado…
Quando eu partir e os despojos do meu corpo cumprirem a minha suprema gratidão pelo campo alimentando as raízes de um sobreiro que tenha vista para Vila Viçosa, de poucas coisas sei que sentirei saudades, mas a descida do Chiado assim num fim de tarde de Natal, não tenho dúvidas, far-me-á muita falta.
Caminho por entre a gente, e num claro benefício dos anos que vão esticando a idade, raras vezes desço agora a Rua Garrett sem que os meus olhos se encontrem com outros reconhecidos pelos afectos, outros olhares entrelaçados na minha história.
Ricardo foi bom encontrar-te e trocar contigo aquelas palavras, embora breves.
Há imagens projectadas no Arco da Rua Augusta e nas paredes do Terreiro do Paço, e uma multidão aplaude o mais inédito “Circo de Natal” que se deixa embalar pela música bem lusitana dos Deolinda.
No escuro da praça de Lisboa que beija o Tejo, e onde o fumo do espectáculo casa com o dos carrinhos das castanhas, uma para mim anónima criança que até aí esteve de boca aberta a assistir ao espectáculo, pede aos pais para brincar com o corvo que apresenta o circo e saltita projectado entre as janelas dos ministérios.
Novos putos mas o mesmo sonho de sempre.
Está garantida a preservação da magia da cidade.
A noite assim pede amigos à mesa onde o tinto de Reguengos acende a partilha das histórias novas… ou as de sempre, mas sempre com esse objectivo nobre que é a libertação das gargalhadas que fazem a festa destes dias nascidos especiais, mais pela nossa vontade do que pela inevitabilidade oferecida pelo calendário.
E os afectos também se expõem na hora em que rasgamos os papéis de embrulho e os presentes se entregam à luz ténue do restaurante repleto de gente que se assemelha agora a uma Babel num rico e imenso cocktail de línguas, quando o ambiente já cheira a café e já se ensaia o regresso a casa por entre a a discussão de qual a rua melhor iluminada, se a da Prata, a Augusta ou a do Ouro.
Em breve será Natal, Lisboa, a perfeita Lisboa, está agora reflectida no retrovisor do meu carro enquanto a voz de Amália solta as inspiradas palavras de David Mourão Ferreira…
“Sempre e sempre amor…”
E eu sigo pelo sonho…


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