A mulher que perfuma o Natal com incenso e a poetisa que vende versos avulso

A manhã de um intenso sol convida-me de forma irresistível a ir até ao Chiado para as derradeiras compras de Natal.
Deixo o carro no Camões, bebo um café na Brasileira e chego aos Mártires a tempo da missa com horário mais estranho da cidade, treze horas e vinte minutos.
“Vai nascer um Salvador”.
Fala-se explicitamente de Natal e pelo Natal me deixo embalar até Centro Comercial do Chiado. Uma última incursão na FNAC seguida de uma entrada Natura onde selecciono os artigos que quero comprar e me dirijo à caixa.
Reparo que imediatamente atrás de mim na fila para pagamento está uma senhora cuja idade por certo já ultrapassou ou setenta anos, e chegada a minha vez, e porque na mão tem apenas dois pequenos objectos, sugiro-lhe que me ultrapasse pois vou supostamente demorar mais tempo com os pagamentos e os embrulhos.
A senhora agradece, sorri e deixa-se ficar no mesmo sítio respondendo-me:
- Excesso de tempo é o meu problema.
É a minha vez de lhe sorrir e enquanto a funcionária toma os meus artigos e inicia o processo de pagamento, a minha vizinha de fila esclarece:
- O que tenho mais próximo da vivência do Natal é circular por aqui nestes dias em que as pessoas compram os presentes que eu não tenho de comprar por carência de destinatários.
E continua:
- Vim comprar duas caixas com incensos para aromatizar a casa.
Pago, pego nos meus sacos e ouso estender-lhe a mão desejando-lhe um resto de dia feliz, já que o Natal…
Saio do Centro Comercial e dirijo-me ao Camões quando por volta da Brasileira e enquanto os turistas se sentam e tiram fotos na estátua de Pessoa, se dirige a mim uma senhora com um monte de folhas e me diz:
- O senhor não me quer comprar um poema?
Respondo-lhe com uma pergunta pensando que estará por ali a vender poemas impressos do Fernando Pessoa:
- Que poemas?
- Poemas que eu faço e vendo para sobreviver.
- E quanto custam os seus poemas?
- O que o senhor quiser dar.
- Mas quem sou eu para atribuir valor monetário à sua poesia?
A minha pergunta surpreende-a e eu acabo por lhe comprar um poema que não faço a mínima ideia se é da autoria dela ou não, e se esta será mais uma maneira airosa de conseguir uma moeda aos transeuntes aqui nos vértices deste triangulo de poetas: Camões, Pessoa e Chiado.
Entro no carro, desço a Rua do Alecrim e sigo pela Avenida 24 de Julho e depois pela Avenida da Índia, não resistindo a saborear o sol de um quase fim de tarde em claro namoro com o Tejo, um sol cujos raios me impedem de ver os detalhes da gente que corre e brinca, e das árvores, que são assim apenas sombras que ladeiam o meu caminho.
Mas há algures nesta cidade uma mulher que por cima da maior solidão aromatiza o seu Natal com incensos exóticos, talvez porque a poesia do Natal, e em geral da vida, anda a ser vendida a preço de “esmola” nas esquinas da própria cidade.
Nasceu um Salvador.
Mas parece que os Homens não souberam mesmo aproveitar esse facto.

Comentários

  1. Meu amigo, esta é a magia do Natal. Fiquei principalmente emocionado com a história da senhora da fila. Na realidade e infelizmente há cada vez mais gente que dispõe de muito tempo para não fazer nada, ou quase nada. Parabéns pela sua escrita, pela comunicação dos momentos que lhe passam pela vida e que muito me fazem pensar. Obrigado por essa sua faceta e por todas as outras. Um grande abraço.

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