HORAS


Existiu um tempo de horas longas...
O relógio do campanário de São Bartolomeu dá todos os quartos e as horas no tom dolente de um sino que repica. Faz-me companhia e é "bússola" pela noite dentro em todos os momentos em que estou desperto.
Ainda posso dormir mais quatro horas…
Já pela manhã soa a sirene que chama os funcionários para a Metalúrgica do Senhor Barradas, e então eu levanto-me finalmente.
A Tia Maria, que na véspera deixou o pequeno-almoço quase pronto em cima da mesa da cozinha, chama por mim se eu me atraso por me sentir demasiado bem debaixo das mantas. Depois e já vestido, pego na bolsa de pano, vou à mercearia da Angelina comprar o pão, inteirando-me aí de alguma novidade, mormente desgraças que a noite tenha trazido à vizinhança ou aos meus conterrâneos, que há sempre alguém à esquina do balcão a cumprir o papel de “telegrama com pernas”.
E à saída da loja, os receptores da mensagem já deduziram novos detalhes invariavelmente escabrosos que transmitem a quem passa como sendo verdades absolutas.
De regresso a casa, sento-me em casa para comer um papo-seco com marmelada acompanhado pelo leite que eu próprio aqueci numa lamparina de álcool; porque para a tia eu nunca serei suficientemente crescido para mexer no fogão a gás.
Sem pressas…
Depois de me despedir da tia, saio de casa, desço a Praça, vou apanhando o Manuel, o Paulo Geadas, o João Paulo e o Paulo Quinteiro, e seguimos de conversa os cinco Corredora abaixo para chegarmos a tempo do primeiro toque para as aulas no liceu que fica à Porta dos Nós.
Tão de conversa que um dia quase que somos atropelados na esquina dos Agostinhos; sem me recordar se isto aconteceu numa altura em que falávamos da vitória dos Gemini no Festival da Canção ou quando o Paulo Geadas nos demonstrou as vantagens inigualáveis da sua grande invenção: as cábulas em harmónio.
De toque em toque vamos de aula em aula, temos "furos", comemos um cachorro em dias especiais, temos ginástica e vamos correr para a Tapada, jogamos ao “pilha três”, tememos as aulas do Professor Palmeiro mas divertimo-nos muito nas aulas do Professor Rente (obcecado com o perfume “Amuleto” e a leitura de “A Morgadinha dos Canaviais”), vamos almoçar a casa, rimo-nos muito e fazemos pactos para o futuro quando nos sentamos todos na Sala de Convívio junto à manjedoura: seremos felizes.
Ao fim da tarde toca novamente a sirene da Metalúrgica, escuto ao longe a da Sofal e eu já cheguei à Livraria Escolar. Sem beliscar a lombada, leio algo especial e que pode ser um livro, uma revista, alguma coisa que até pode ser importante para um trabalho de casa; estou à conversa com a D. Joana e a Antónia, o João Paulo, e quase sempre chega o Sr. Lourinhã que é Presidente da Câmara e fica por ali connosco.
Às vezes, nas tardes mais frias, "aquecemo-nos" com bolotas que assamos no aquecedor.
Passa o Sr. Basílio do Café Cortiço com uma marmita de alumínio para levar o jantar a um cliente, as pessoas que foram à Sociedade Artística para lerem as últimas notícias no vespertino "A capital" já estão de regresso, e sabemos que são horas de fechar a porta.
Na Praça encontro por vezes o Manuel à esquina da casa onde ele mora. Ficamos um pouco debaixo da laranjeira a contar as últimas ou vamos andar de bicicleta, porque ele me empresta a sua "máquina" para uma volta no passeio do Framar.
Tudo isto, um pouco antes de rumar à Rua de Três.
A avó Bacalhau talvez ainda esteja sentada à porta e eu fico por ali uns minutos escutando as histórias divertidas até que entretanto chega a senhora de preto que benze os pés e os pulsos torcidos, e que vem fazer companhia nocturna à vizinha Jerónima, e são horas de subir para casa e fazer os trabalhos de casa.
A escada faz eco e eu canto sempre qualquer coisa durante a subida. Acho que durante a minha vida, este foi o único espaço que soube entender as capacidades canoras da minha voz de… batida de máquina de escrever.
O som das chaves do pai no momento de abrir a porta chama-nos a todos para a mesa, jantamos, ouvimos as notícias do Telejornal com um ar solene, e logo de seguida, subo a Praça até chegar novamente a casa da tia.
Sempre sem pressas, e se tiver sorte ainda encontro o meu professor preferido e dou dois dedos de conversa junto à estátua do Henrique Pousão.
Quando for grande quero ser como ele...
Sento-me com a tia na mesa redonda que tem uma saia verde com flores azuis, do mesmo padrão dos cortinados, e acabo os trabalhos. Tenho um dossier grande com as folhas das diferentes disciplinas separadas por elementos de cartolina. O dossier está forrado de plástico transparente e tem colado na frente uma foto dos ABBA que recortei da Revista do Círculo de Leitores.
A tia gosta muito que eu lhe leia aquilo que escrevo e sobra sempre tempo para uma conversa a dois dispensando a pequena televisão.
A tia Maria viveu muitos anos em Lisboa na Rua Elias Garcia numa casa junto à Feira Popular então em Palhavã. Conta-me histórias de teatros, de passeios no Tejo, fala-me da magia do Rossio, e faz-me sonhar.
Sei que um dia irei viver essa Lisboa… e ela também sabe isso e prepara-me para esse dia.
O campanário dá as dez e meia e subimos para nos deitarmos, e ai de mim que me esqueça do beijo de boa noite.
E deito-me, ainda e sempre sem pressas.
Não sei se é efeito de alguma razoável memória que eu possa ter, se as horas entretanto ganharam asas…mas o que é um facto é que estes eram dias de horas muitíssimo maiores.
O segredo?
Talvez nunca ter de olhar para o relógio.
De qualquer forma, nunca são os minutos que tecem as horas.

Vila Viçosa, algures pelos anos setenta. 


(“Um mês A GOSTO” / Dia 9 / Letra H / Tema proposto por Helena Pereira)

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