A avó Dade


Em tempo de inverno, os serões em sua casa tinham sempre o atractivo da braseira acesa e colocada num estrado de madeira, à volta do qual nos sentávamos em cadeiras baixas, também de madeira, com assento de buínho e invariavelmente pintadas de vermelho.
Contavam-se histórias desse tempo, ou de “entigamente”, como insistia dizer o avô Chico, e descansava-se dos dias intensos de trabalho que começavam quase sempre pelas 5 da manhã.
E para a avó Dade, o descanso do dia passado na apanha da azeitona, nas vindimas, nas matanças do porco ou em outras múltiplas actividades, era feito ali à volta do lume mas sempre agarrada a duas agulhas de tricot com as quais tecia botas de dormir para toda a família e amigos. E era eu que quase sempre a ajudava a preparar o novelo para a sua tarefa…
O jantar tinha sempre o privilégio da melhor açorda ou de uma fantástica sopa de tomate carregada de pimento verde, para além de outros acepipes únicos, de entre os quais tenho de destacar os melhores pastéis de massa tenra que alguma vez já provei.
Eu e o avô sentávamo-nos primeiro à volta do lume, enquanto esperávamos que a avó se juntasse a nós depois de arrumar a cozinha e lavar a louça nos alguidares de barro que tinha destinado para esse efeito.
Ficávamos os três à conversa até que o relógio de parede que tinha um pêndulo e batia as meias e as horas certas, nos indicasse que era tempo de eu regressar a casa. E era sempre a avó que se encarregava dessa tarefa.
Enquanto percorríamos as ruas então muito mal iluminadas de Vila Viçosa, os caminhos que o frio tinha silenciado e tornado quase desertos de gente, as calçadas onde ressoavam os nossos passos e onde só nos cruzávamos com alguns casais de jovens namorados, nesse tempo em que os rapazes vinham até à porta das suas donzelas para uma conversa ao luar; a avó aconchegava-me a ela partilhando comigo o seu xaile quente.
Aqui e ali parávamos para uma história ou para tentarmos identificar objectos e pessoas nos desenhos que as fachadas mal caídas nos permitiam imaginar. Na rua de Santo António, no muro das traseiras do Quartel dos Bombeiros, havia uma quase perfeita cara de rapazinho…
E quem assim nos aquece, quem nos mostra os caminhos e nele nos ampara, e quem nos dá asas e nos ensina a sonhar, torna-se mestre e herói nas nossas vidas.
A avó Dade fez ontem 101 anos e guardo-lhe a doce memória de uma heroína fundamental da minha história.
Muitos anos mais tarde ainda tive o privilégio de lhe retribuir uma parte desses mimos extraordinários com que me ajudou a crescer. Era na altura em que ela detestava que eu a transportasse por auto-estradas pois não podia ver casas e gente, e também quando me confidenciava a mim e ao Zé Artur que daquilo que mais tinha saudade era de ir para o campo trabalhar e apanhar azeitona.
Com uma fé inabalável em Nossa Senhora da Conceição e uma admiração pelo Beato João Paulo II que teve o privilégio de ver em Vila Viçosa, reforçou com a idade, uma perspectiva de tragédia para a humanidade, identificando alguns sinais de modernidade como claros indícios do fim do mundo que ela acreditava iria acontecer “no ano dos três noves”, 1999.
Partiu na noite do dia 31 de Dezembro de 1998…
E o mundo não acabou, pelo contrário, ofereceu-nos os anos para que confirmássemos como a avó Natividade se perpetuou em nós.
E não é só pelas botas de lã que ela me teceu e que ainda hoje calço para dormir quando as noites estão mais frias.

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