JOSÉ ARTUR

Quando eu aprendi a escrever tu aprendeste a fazer linhas algo abstractas com a minha esferográfica, carregando em ti esse gosto muito particular de as exercitar exactamente nas mesmas páginas onde eu escrevia as minhas primeiras frases. Eu que então como agora, nem uma emenda gosto de ver sobre algo que escreva…
E foi por esse motivo e por aí, pelos meus 6 e os teus 2 anos, numa altura em que eu fui para ti aquilo que nunca serei no mundo da moda “Mano-Quim”; que nós tivemos a maior “guerra” das nossas vidas.
Já passaram entretanto mais de quarenta anos e na paz da perfeição de todo este tempo, confesso-te que não consigo sequer imaginar a minha vida sem a tua presença nesta unidade composta por duas metades, tu e eu, que é o sonho que o pai e a mãe um dia ousaram e souberam sonhar.
Indivisíveis, nós somos assumidamente as duas metades do amor nascido de um sonho maior.
E por isso damos tão facilmente vida e corpo a esse amor, sendo como somos siameses de alma, de sonho e de tanto querer.
Os nossos quartos de “solteiros” carregavam sempre duas camas paralelas de onde era fácil saltarem cumplicidades, gargalhadas e palavras noite fora, até ao momento em que pela madrugada o pai engrossava a voz e nos “pedia” que dormíssemos.
Nesse tempo, quando já tínhamos crescido e já não nos mascaravam no Carnaval para a matiné da Sociedade Artística, a mim de palhaço e a ti de pastor, e nos levavam a tirar fotografias a casa do Sr. Sousa Menezes; ouvíamos os relatos do nosso Benfica num rádio portátil em forma de bola que comemorava o “Naranjito”, a mascote do Mundial de Futebol de 1982 em Espanha (recordas-te do golo do Nené à Roménia do Euro 1984? O homem esteve a gritar golo aí durante uns bons dois minutos); tínhamos de nos levantar muitas vezes porque a música que frequentemente tocava na aparelhagem era a partir de “singles” e a agulha tinha que andar sempre abaixo e acima; riamo-nos muito com as fotos das tuas colegas de turma que constavam numa fotocópia do livro de ponto, que estava na tua posse por seres delegado de turma, e em que elas, à moda dos anos oitenta, tinham mais volume de cabelo do que cabeça e ombros com enchumaços incluídos; tu contavas as histórias loucas dos teus colegas mais excêntricos e partilhavas esse vício de estar sempre a falar em “Barbacena”; falávamos dos escuteiros, do futebol e da tua prestação como Defesa Direito nos juniores do Calipolense…
E eu contava as aventuras de um rapaz do campo entregue às delícias de uma cidade junto ao mar.
A arquitectura dessas casas simples e dessas camas sempre decoradas com uma colcha costurada pela mãe, invariavelmente em tom azul, de rapaz, foram afinal o presságio para o que sempre foi e será a nossa vida: uma alegria partilhada em paralelo, mas com muito mais pontos de contacto do que uma longa linha férrea por onde passam os comboios.
Destes tão confortáveis passos paralelos saltam a cada momento palavras, cumplicidades, sorrisos, gargalhadas e até silêncios (porque quando se gosta podem até dispensar-se todas as palavras que nada se cala); e sente-se a cada segundo este tão grande privilégio de saber que afinal nunca estamos sós.
E a vida é então muito mais fácil.
Se cada dia é então a página branca de um papel que espera por nós para que escrevamos um parágrafo da nossa história comum, nós encarregamo-nos sempre de a preencher já sem o abstracto de traços infantis mas com as coordenadas letras que expressam e dão continuidade ao sonho e ao amor de onde viemos e de que somos feitos.
As letras da poesia, algo grande, um paragrafo ou o retalho de uma vida que contigo é sempre muito mais perfeita.
Mano, parabéns pelos 43 anos.

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