Quando uma criança pede “cocó”

A manhã de Segunda-feira revela finalmente o sol e confirma que a “Stephanie” já “voou” para outras bandas.
Depois da tempestade, a bonança também se manifesta pela ausência de trânsito no IC19, e ao redor do Estádio da Luz parece que já nada de estranho anda pelos ares.
Com o meu pai, chego cedo à Sala de Espera do Hospital da Luz onde aguardamos a vez para uma consulta de oftalmologia.
A sala está repleta.
No silêncio que é quebrado apenas pelo constante e irritante ruído que anuncia a chamada até ao balcão de atendimento do detentor da senha com um determinado número, segundo indicações de um ecrã muito colorido; uma criança com não mais de três anos faz ouvir a sua voz:
- Oh mãe leva-me a fazer cocó.
E a mãe cumpre as “ordens” e atravessa a sala de mão dada com o miúdo por entre os sorrisos das dezenas de pessoas, porque ninguém pode ter deixado de escutar o pedido feito num tom de voz que só tem desculpa pelo facto de se ser criança.
À minha frente e a assistir a esta cena, está sentada uma senhora com mais de oitenta anos. Chegou há pouco e sentou-se com a ajuda de uma filha que a acompanhava pela mão.
As semelhanças do rosto não desmentem o parentesco e mãe e filha persistem de mão dada enquanto assim sentadas em cadeiras lado a lado.
E eu que também estou sentado por ali com o meu pai e com tantos Pedros, Paulos, Marias… tenho de repente a sensação de ver cruzar-se num mesmo espaço, o inicio e o quase fim desse percurso a que chamamos vida.
Eu, os Pedros, os Paulos, as Marias e todos os outros estamos algures por esse caminho que nos vai parecendo tão mais curto à medida que ficamos mais próximos da senhora sentada do que do miúdo que correu com a mãe para a casa de banho que está ao fundo da sala.
E vagabundo como é o pensamento, deixo-me ir pela urgência de viver, pelo amor, pelo prazer das coisas grandes, pela intensidade de preencher os dias com tudo o que conduz efectivamente aos desejos e aos sonhos, pelo conforto dos afectos essenciais a todas as idades, e pela família, essa gente que nos dá a mão quer seja por impulso genético ou não, mas sempre por um impulso de amor.
Já não assisto ao regresso do menino que foi fazer “cocó” pois chamam “Artur” e nós avançámos para a consulta.
Mas continuamos pelos sorrisos com o médico no seu consultório quando ele pergunta:
- O Sr. Artur estava a fazer uma “Prostaglandina” para o tratamento do glaucoma, certo?
Para o meu pai como para a maioria da humanidade, “Prostaglandina” soa a nome de filho da Luciana Abreu e do Djaló.
É sempre bom começar e continuar as segundas-feiras com sorrisos.
A vista do pai está óptima e em breve nos devolvemos à rua constatando que o IC19 continua sem trânsito.
A vida seguirá o seu rumo normal que tantas vezes nos “exige” a mão de alguém, e outras, quando estamos aí algures bem no meio do entre o nascer e o morrer, apenas uma palavra ou o olhar de quem gosta de nós.
Se todos formos generosos a dar as mãos, as palavras, os sorrisos e os olhares, a ninguém nunca faltará a satisfação de tão básica necessidade: o amor.
E assim se comprova tudo o que se pode aprender numa sala de espera quando de forma tão natural, uma criança pede cocó.

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