Referendem-me

As semanas são enormes porque são sempre gigantes os dias em que não há nada sobre a mesa, nem mesmo o pão, esse alimento tão versátil que permite cortar dois pedaços, um maior e o outro mais pequeno que faz as vezes do queijo, do chouriço ou de qualquer outro acompanhamento que não existe. Se até nas açordas rogamos aos coentros e aos poejos que disfarcem o gosto não muito agradável do azeite já usado que pedimos a quem pôde fritar nele tantos alimentos dos quais nem sequer o nome conhecemos…
Perde-se a noção do frio ou do calor quando é íntimo o convívio dos pés descalços com a temperatura que as estações do ano vão oferecendo à terra ou à calçada das ruas.
Há ricos e pobres, e até Deus serve para distinguir tais estatutos. As mulheres ricas ajoelham à beira dos sacrários em almofadas de veludo e as pobres nas pedras frias do ribeiro que corre, onde lavam a roupa e onde as Ave-Marias saem mais requintadas porque temperadas pelo sal de muitas lágrimas. Os homens se são ricos agarram-se às varas do palio que patrocina os passeios de Nosso Senhor por entre a vaidade, a hipocrisia e a miséria dos outros homens a quem restam as varas que sacodem as oliveiras para recolher o seu fruto.
A dignidade é um valor, mas apenas bancário.
Existe muita dor, demasiada dor, mas é obrigatório vive-la no silêncio porque ao mínimo sinal de revolta há sempre tiros e murros que chegam pela calada da noite e que impõem o silêncio pela força, matando tudo, e até o pensamento, que nem isso se quer livre num país de paz e de bons costumes, onde "moralmente" tudo afinal se pode ser desde que haja a arte de camuflar e impedir que alguém o possa saber.
Gostaria de ter escrito ficção nos parágrafos anteriores, mas não, definitivamente. Dei palavras às memórias que guardo de tantas conversas com os meus avós, partilhas em que eles começavam sempre a falar dizendo “no meu tempo”, numa altura em que já todos estávamos calçados, tínhamos comido, falávamos em liberdade e em que eu pensava de mim para mim:
- De liberdade quero que seja sempre este que é “o meu tempo”, um tempo que chegou algures por entre o nevoeiro de uma manhã de primavera.
E sem apagar jamais em mim esta herança de valor incalculável passada pelos meus “heróis simples” e feita de tanta coisa ao redor da dor.
Nestes meus dias de um tempo que recuso a pensar que não seja o meu, ouço alguém dizer que os direitos dos indivíduos são referendáveis ou questionáveis, que são uma e a mesma coisa; vejo as “academias” que deveriam andar a formar Homens, a ressuscitarem a terminologia do fascismo de Mussolini e a prestarem vassalagem a um “Dux” que ata os pés aos seus semelhantes e lhes exige vassalagem; assisto a agressões feitas à dignidade das pessoas com base na transformação cretina da diversidade que caracteriza o ser humano, em muros intransponíveis da diferença; vejo o despudor com que se mexe nos parcos rendimentos de alguns para sustentar a saúde financeira da banca num país que é gerido por balanços financeiros e, todos sabemos que a dor, por ser incalculável, nunca será convertida em qualquer parâmetro a incluir num balancete; vejo o susto do meu educado vizinho Brasileiro que vive por aqui no prédio com a filha, quando na véspera de Natal lhes estendo a mão à saída do elevador que partilhámos na descida para lhes desejar uma boa consoada, porque para mais nada parecem servir as nossas mãos, se não apenas para matar e agredir…
E vejo tanta coisa que fere de morte a liberdade e compromete as expectativas legítimas que criei e pelas quais lutei para o “meu tempo”.
Mas não me rendo e acho que ninguém o deve fazer.
Recuso-me a morrer na asfixia da liberdade e muito menos às mãos de tais imbecis.
Questionem-me, sequem-me, humilhem-me, referendem-me, matem-me… façam tudo o que vos aprouver, mas jamais deixarei de acreditar na liberdade, nos valores, nos direitos; e jamais deixarei de ser o que sou e quero ser, só para que vocês alimentem a hipocrisia do “sei que existe mas não quero ver”.
E por tudo isso lutarei.
Por mim vocês jamais ressuscitarão a dor.

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