A ausência e a saudade dos alperces


Em Vila Viçosa, no prédio onde moramos há mais de 30 anos, tivemos o privilégio de estabelecer uma relação de família com os nossos vizinhos Clotilde e João.
Um dos indiscutíveis prazeres de nascer e crescer num espaço rural é o facto de soltarmos os afectos sem nos impormos quaisquer reservas, embalados pela proximidade e a confiança que estabelecemos com todos os que nos rodeiam. E por esta via, os vizinhos transformam-se em família, muito mais do que apenas bons amigos.
Com a Vizinha Clotilde e o Vizinho João, para além de termos partilhado a hortelã, os coentros, a salsa, as brasas para acender ou reacender a braseira, a preparação dos bolos da Páscoa e das filhós no Carnaval, as favas do quintal, as limonadas nos lanches de verão e o chá nos de inverno, usufruímos do raro benefício de décadas de conforto na hora de limpar as lágrimas, e a alegria do riso partilhado em tantos e tão bons momentos de felicidade.
Nem as paredes tão grossas do nosso prédio vindo dos anos de setecentos impediram jamais que tamanha e tão boa relação se estabelecesse.
Há alguns anos a Vizinha partiu e o Vizinho mudou de residência por não poder estar sozinho e ainda hoje temos o prazer de o visitar com alguma regularidade.
Deixaram-nos enormes memórias e uma infinidade de histórias que recontamos tantas e tantas vezes. Com raízes no seu quintal e subindo até à nossa varanda para nos dar sombra nos quentes dias do estio Alentejano, permaneceu uma imponente árvore que nos meses de Junho nos brindava com uma infinita quantidade de alperces. Fruta doce e sempre ao alcance das nossas mãos permitindo esse imbatível prazer de comer a fruta acabada de colher da árvore.
Da janela da nossa cozinha e de todo o espaço da varanda, a vista oferecida por cada estação tinha sempre a cor desta árvore que se despia no inverno, se enchia de folhas verdes na primavera e nos oferecia o fruto no inicio do verão.
O ano passado ainda teve folhas mas os frutos que colhemos foram pouco mais de uma dúzia.
Este ano, a primavera já não lhe trouxe qualquer folha e muito menos indícios de fruto. Permanece com os troncos vazios.
A morte de uma árvore, a nobreza do tronco que se mantém de pé mas a triste sensação de que da sua madeira agora ressequida já não brotará mais qualquer sinal de vida.
Mais do que a saudade dos alperces que por certo nos atingirá em Junho, a saudade dos dias em que os podíamos compartir com os nossos Vizinhos de sempre. Os alperces foram sempre afinal um doce símbolo da nossa ligação num espaço de partilha e família.
Agora, resta-nos a memória, as doces, perfeitas e eternas lembranças que jamais se vergam às agruras e ao desgaste do tempo.
Os afectos, as memórias, as árvores…
O que é grande jamais morre ou se deixa cair, pelo contrário, permanece eterno e nobre no porte de jamais desistir de mirar e buscar o céu.  

Comentários

  1. Meu bom amigo.

    Mais um belo texto que me tocou e muito, pois me fez relembrar um pouco a vida no meu prédio onde moro à quase 25 anos.

    Muito obrigado pelo texto e por me fazer recordar boas memórias da minha vida em família, do meu prédio e da minha infância.

    Com um abraço grande.

    Deste sempre amigo.

    AR

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