Uma janela com vista para a revolução

Istambul, 15 de Junho de 2013. Passa pouco das vinte horas.
Quando regressei ao hotel, o Point Taksim Hotel, há cerca de duas horas constatei que a Praça Taksim, a cinquenta metros, continua ocupada pelos manifestantes e que definitivamente se transformou numa atracção turística, tal a quantidade de “mirones” e de vendedores ambulantes a comercializar pão, fruta, gelados e... capacetes e máscaras.
Verifico também que a polícia se perfila com Homens e viaturas em todas as ruas que desembocam na praça.
Por estas estranhas movimentações, resolvo adiar a minha saída do hotel para lá das vinte horas e deixo-me ficar no quarto para “espreitar” os noticiários. Não entendo Turco, mas não há estacão de TV que não dê um claríssimo destaque a uma manifestação gigantesca de apoio ao governo ocorrida nessa tarde em Ankara.
O contra-ataque do “fundamentalismo”.
Estou em frente à TV mas o barulho intenso das sirenes atrai-me até ao hall do hotel onde encontro os meus companheiros de viagem: a polícia já não deixara sair ninguém para jantar.
Pelas paredes de vidro do piso imediatamente por cima da recepção temos vista privilegiada para o Parque e rapidamente começamos a ver a multidão em fuga, à frente da polícia que dispara jactos de tinta e gás lacrimogéneo.
Estamos com os jornalistas e os operadores de câmara junto a nós e bem antes do director do hotel nos mandar sair daquele sítio por razoes de segurança, começamos a sentir o gás que venceu as portas apesar de elas estarem fechadas.
Sentimo-lo nos olhos e na garganta e surge o natural mecanismo de tosse perante aquele ataque de uma espécie de pimenta em estado gasoso.
Subimos ao piso nove para comer algo mas antes constatamos que as ruas foram postas às escuras e já há pessoas a expressarem algumas dificuldades respiratórias e a serem assistidas no espaço da recepção do hotel.
O restaurante está a abarrotar mas ainda conseguimos comer algo no conforto de oito amigos e descer depois aos quartos, maioritariamente com janelas para um pátio interior que não nos dá a visão da rua.
Adormeço ao som de sirenes e na expectativa do que a manhã seguinte nos reservará.
Conseguirá o autocarro aproximar-se do hotel para nos recolher e conduzir ao aeroporto às sete da manhã?
Conseguiu e chegámos ao aeroporto em segurança não deixando de ver uma série de carros ardidos ao longo do percurso, prova dos focos de luta na noite anterior.
E cheguei a Lisboa.
Nunca me tinha visto num cenário de "guerra" de cidadãos contra cidadãos, filhos de uma mesma terra, com a violência à solta de uma forma tão louca.
Reforço perante tudo o que vi que sou um adepto da não-violência, um Homem de fé no diálogo que respeita e confronta as diferenças de uma forma positiva e construtiva.
Sinto uma verdadeira repulsa por esta violência.
Sei que há intensas motivações religiosas por detrás desta luta e isso ainda agudiza mais o meu sentir.
Que estranha forma esta, a de glorificar a Deus orando intensamente e cumprindo todos os preceitos, alguns, reconheço, demasiado incompreensíveis, e depois violentar o próximo numa atitude acéfala e medieval.
A manifestação de Deus mais próxima de cada Homem é o outro Homem. Todos os Homens que connosco se cruzam nos caminhos da vida e que por razões étnicas, religiosas, orientação sexual ou outras, são diferentes no acessório, nunca deixando de ser Homens e uma expressão da grandeza de Deus.
E a paz, a liberdade e o exercício activo de ambas, serão sempre as formas mais eficazes de louvar a Deus, qualquer que seja a religião que se professe. Infelizmente o “pecado” da intolerância é transversal às diferentes religiões.
Foi uma noite difícil embora a visão da “guerra” tenha sempre este condão de tornar requintado e gourmet o doce sabor da paz que se ambiciona.
Espero que Istambul volte aos dias de sol que me acolheram e que o fundamentalismo não mate a liberdade e a tolerância perante a diversidade.

Porque espero voltar um dia, breve, ao perfeito sol da tolerância que une Ásia e Europa numa cidade única e verdadeiramente mágica.

Comentários

  1. Quem viveu estes momentos sente o toque destas palavras, parabéns pelo reviver transmitido do momento. Abraço.

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