São João e um brinde com limonada

A Tia Maria faria hoje 105 anos, e nos 86 em que andou pela Terra nunca se conformou com o seu segundo nome de Teodora, considerando que em homenagem ao santo do dia do seu nascimento, se deveria ter chamado Maria João.
Mas nunca se dando por vencida e não aceitando como último destino esta má escolha dos seus padrinhos, tratou sempre de comemorar o seu aniversário em festa de grande louvor ao “Baptista”, não faltando à missa na ermida existente no Carrascal, preparando sofisticadas flores de papel para ajudar a decorar a sua Rua de Santa Luzia, e também com a montagem de uns altares encimados pela imagem de barro pintado que ela tinha todo o ano sobre a cómoda do seu quarto, e que ainda hoje lhe guardamos em nossa casa; altares decorados com as flores dos melhores vasos do quintal.
E o quintal era um espaço não muito grande, sombrio e fresco, porque beneficiário da sombra de um velho limoeiro que jamais soube o que era não ter folhas, e que partilhava raízes com os coentros, a hortelã e a salsa, os “cheiros” existentes no canteiro arrumado à parede do lado esquerdo.
Ao fundo do quintal existia um telheiro onde no verão tomávamos banho com a ajuda de um balde / duche de metal cuja torneira funcionava através de uma corrente que se puxava sempre que desejássemos que a água caísse sobre a nossa cabeça.
Do incansável limoeiro se colhiam os frutos em Dia de São João para preparar um lanche de aniversário que para além do toque ácido da limonada, tinha também o aroma e o gosto de um daqueles bolos que se fazem em casa nas velhas formas que parecem já saber de cor todas as receitas.
Chamávamos a Angelina que era nossa amiga e tinha uma mercearia quase em frente da casa da tia, e sentávamo-nos todos à volta da mesa redonda que ficava muito próxima da janela do rés-do-chão que era o melhor contacto com a rua, e debaixo da qual estava o célebre altar de São João.
Por mais anos que passem e por mais dias de São João que a vida me ofereça, não chegará nunca a hora do lanche sem que eu sinta saudades destes momentos.
Da “Ti Bia” e desta casa guardo as memórias de muitos e bons anos, milhões de palavras, de gestos, de aromas e sabores, dos infinitos e profundos afectos que me moldaram o ser; e guardo em minha casa uma velha e colorida manta de lã que ainda hoje derrota por goleada, os sofisticados edredões do IKEA, nas noites em que é mesmo necessário aquecer.
Uma herança de lã para me confortar na hora de soltar em sonhos as muitas heranças da gente, da minha gente, e de um tempo magnífico e inesquecível.
Um dia, a Tia Maria resolveu deitar para o chão do fundo do quintal, a água que restava no alguidar depois de ter lavado e preparado o tomate para a sopa do almoço.
Não tardou a que por entre as frestas das lajes grosseiras e desordenadas que nos ofereciam chão, nascessem viçosos tomateiros de onde se colheram frutos para algumas outras sopas.
Por debaixo das lajes havia terra fértil.
Por debaixo do tempo de hoje há sempre a raiz do que somos alimentada pelo muito que nos deram e que vivemos.
Serei sempre grato.
E um beijo muito especial de parabéns para a Tia Maria, que esteja onde estiver não resistirá hoje a ir cumprimentar o São João e a brindar com ele… com limonada, claro. 

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