A sorte e as tômbolas numa noite quente de verão

Em Vila Viçosa, o segundo fim-de-semana de Setembro convida-nos sempre para ir além do Castelo e fazermos a festa à sombra do Convento dos Capuchos.
Foi sempre assim e o arraial é ainda o melhor ponto de encontro para a reunião dos amigos.
Durante muitos anos, ao certo desde 1975 e até algures no final dos anos oitenta, o meu pai pertenceu à Comissão das Festas e, de uma forma espontânea, toda a família se envolvia na preparação das mesmas.
A mim, por vezes com a ajuda dos meus amigos, cabia-me a monótona tarefa de escrever 100 vezes o mesmo número, numa folha picotada e em que se destacavam 100 pedaços de papel, cada um tendo impresso um número de 00 a 99.
O número que eu repetia 100 vezes em cada folha era o número de série que permitia controlar a venda das rifas e os vencedores dos prémios que se habilitavam nas quermesses e nas tômbolas que existiam no arraial.
Durante a festa, lá ia eu para uma dessas “áreas de jogo”, verdadeiros casinos ao estilo rural e que mais não eram do que quadrados de terreno delimitados por umas frágeis grades de madeira, participando nessa festa de, através da sorte e por obra de duas improvisadas roletas, distribuir patos, coelhos, galinhas, garrafas de vinho ou de anis escarchado, sendo que todos os animais se encontravam vivos e capazes de ir fazer criação para os quintais e hortas dos mais afortunados.
Apoiava nesta tarefa um dos companheiros do meu pai, o homem que relatava o girar da roda e os números premiados, com quem acabava sempre a noite a contar literalmente tostões e a agrupá-los em rolinhos que envolvíamos em papel.
Vibrávamos com a verba apurada pois tal contribuiria decisivamente para a saúde financeira da Comissão e ajudava a assegurar as festas do ano seguinte.
E a festa continuaria sempre.
Este amigo do meu pai, e meu, partiu recentemente.
Soube-o ontem, um pouco antes da morte do pai de uma amiga e colega de Faculdade nos ter convocado para um serão diferente, ainda com a cumplicidade de uma lua gigante e com a noite de Oeiras a ter uma indiscutível marca de verão.
E deste duplo encontro com a morte numa segunda-feira quente de Junho, no silêncio da capela, entre Pais-Nosso ou mesmo há conversa com os colegas que, passada há muito a fase dos casamentos, só revemos nestas ocasiões, me brotaram estas memórias.
Não sei se envelhecer é adquirir esta noção, mas é um facto que começamos a não ter a cobertura da geração que nos antecedeu e somos nós os mais próximos da roda, aqueles que a fazem verdadeiramente girar para ditar a sorte.
Já não somos os que fazemos a primeira parte, somos a banda que dá nome ao concerto.
E a sorte impõe-nos sempre uma dupla missão: urgência e a selecção daquilo e daqueles que verdadeiramente importam.
Isso nos pede o tempo e nos exige a vida que merece ser sempre coroada com a glória dos nossos melhores sorrisos.
Para que a festa nunca se acabe.

Comentários

  1. É a vida e ao longo dela com o envelhecer vamos notando e sentido tudo aquilo que escreveste magistralmente.
    Mais palavras para que.
    Com um abraço.
    AR.

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