As palavras eternas

Quando cheguei a Lisboa em 1984, cedo descobri o encanto adicional que Junho sempre oferece à capital, sendo como é, e desde logo, o mês das Festas de Santo António: a Feira do Livro.
Residindo então no Príncipe Real, habituei-me a sair do metro no Marquês e a diariamente percorrer os pavilhões sempre na expectativa de aproveitar em cada uma das editoras, os preços mais baixos das obras do dia.
Sozinho ou acompanhado por alguns colegas, lá atravessava o mar de vendedoras de contrafacção da Lacoste, daquelas que vendiam pólos em que o crocodilo se descolava e tinha de se voltar a colar, e aproveitando a fresca brisa do fim da tarde, via todas as novidades, sentia o sublime gosto de folhear os livros e, de quando em vez, tinha o prazer de me cruzar com escritores com quem trocava algumas palavras durante o breve tempo de um autógrafo. Foi assim que um dia conversei e apertei a mão a um Prémio Nobel da Literatura: José Saramago.
Regressava depois a casa por São Mamede com direito a uma bica na Pastelaria Alsaciana, à Politécnica, percorrendo as ruas onde chovia a flor do Jacarandá, essa espécie de neve lilás que abençoa Lisboa em cada final de primavera.  
Ontem domingo, numa tarde quente que só perto das 19 horas começou a revelar a brisa fresca que vem do Tejo, sentei-me a uma mesa na Feira do Livro na companhia do meu Pomar das Laranjeiras.
Eu e a verdade e a simplicidade dos meus dias, história pessoal impressa no prazer de uma partilha, apregoado na instalação sonora da Feira na companhia de nomes daqueles que fazem com que coremos ao primeiro contacto.
Eu, a família e muitos amigos que não quiseram deixar de passar por lá para comigo fazerem a festa desta partilha, dando-lhe um verdadeiro sentido pois é sempre para os amigos que eu escrevo, como se cada palavra fosse a célula de um corpo feito de letras, uma carta, que só é diferente das demais porque já não chega pelo correio e dispensa selo.
E de memórias, de incentivos e de desafios se fizeram as conversas que me rechearam a tarde com os maiores afectos.
Uma tarde que definitivamente me fez sentir muito bem e me fez crescer.
Deixei o Parque Eduardo VII de carro e na companhia de dois amigos, percorrendo sem lhes confidenciar tal facto, as minhas ruas dos Jacarandás. O prazer de voltar aos espaços da nossa história e de nos afinarmos pelo diapasão da memória.
Não tomámos a bica na Alsaciana porque a hora exigia jantar e uma tarde assim estava mesmo a pedir sardinhas, Bairro Alto, para além de uma mesa cheia de amizade.
Já andava à solta por Lisboa e na mais alta cumplicidade da lua, a brisa do rio que rouba o aroma às sardinheiras e amplia o canto do fado que ressoa nas vielas; quando pusemos os passos a rumar ao descanso.
A vida continua o seu rumo.
Perfeita, a vida, mote para mais histórias escritas por inspiração da verdade e da simplicidade.
E com ou sem as minhas palavras, em cada mês de Junho jamais deixarei de voltar ao Marquês para a festa das palavras que nos fazem sonhar, essas tantas que tornadas escritas são um privilégio e ganham o estatuto de uma doce eternidade. 

Comentários

  1. Lindo texto e é assim que fazes o pomar das laranjeiras ser tão rico de palavras.
    M. Pereira

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM