Figos, laranjas e romãs

Acordo às quatro e meia da manhã com o canto propagado pelo sistema de som do minarete da Mesquita mais próxima do hotel.

Este matinal convite à oração prova claramente que os portistas não fazem mesmo a mínima ideia do que é ser Mouro.

Nem eu faço e sou tantas vezes apelidado de o ser.

Viro-me para o outro lado da cama e quando estou quase a adormecer, o grupo de Japoneses prepara-se para sair do hotel e como entretanto amanheceu, resolvem alinhar o seu riso com o chilrear dos milhares de pássaros que habitam na trepadeira que passa pela janela do meu quarto.

Tento adormecer mas já falta pouco para que o telefone me desperte pelas seis.

Mas depois do Japão, o Brasil...

O grupo de Brasileiros prepara-se para o pequeno-almoço e como se acham muita graça e como acham que todos lhes achamos muita graça, resolvem oferecer ao hotel uma micro instalação da Rede Globo em formato "telenovela muito perto de si".

E eu?

Entre Árabes, Japoneses e Brasileiros ainda consigo concluir antes do toque do telefone que a Assembleia Geral das Nações Unidas se juntou hoje à minha volta para não me deixar dormir.

Estou muito mais do que acordado quando finalmente dão as seis e pulo da cama. 

Mas o bom humor continua.
Éfeso é hoje o meu objectivo no percurso até Izmir, a terceira cidade da Turquia.

Os primeiros quilómetros do caminho levam-nos ao centro de pequenas aldeias sempre situadas ao redor de uma Mesquita onde vemos as mulheres já nas suas tarefas diárias e muitos homens trabalhando no campo ou então à conversa nas mesas muito simples das improvisadas esplanadas dos cafés.

Entre aldeias, mergulhamos nos mares de figueiras, laranjeiras e pomares de romãs. Uma festa em tons de verde a caminho do Mar Egeu.

Há uma multidão de turistas a visitar Éfeso, cidade que a profusão de línguas transformou momentaneamente numa Babel, mas a confusão instalada não consegue mesmo assim abafar o eco das palavras de São Paulo que emergem por entre todas as ruínas Romanas desta cidade que foi fundada pelos Gregos.

Passo pelos Banhos de Escolástica, a mulher que gostando de ensinar deu nome a todas as escolas, e lentamente e pela multidão chego à Biblioteca de Celso. Pela majestosa fachada não será difícil imaginar que algum dia aquele edifício abrigou 12.000 livros.

A visão do teatro com capacidade para 24.000 pessoas é imponente e um bom ponto para dizer adeus à cidade e começar a subir para a casa de Nossa Senhora.

Assumindo o pedido de Jesus no calvário, São João Evangelista, que comprovadamente viveu e morreu em Éfeso, passou desde esse momento a viver com Maria, acreditando-se que o fizeram num casa situada no cimo de uma alta montanha junto a uma fonte inesgotável de água fresca.

A casa é simples num estilo que não nos custa associar à simplicidade de Maria, embora a identificação deste lugar como sendo o da casa da Mãe de Jesus seja demasiado suportada por lendas.

Uma certeza e bem agradável é a forma como os Turcos se referem a Nossa Senhora, Meryem Ana, em Português, Mãe Maria.

Descendo do monte e já na companhia do Egeu, inicio o caminho para Esmirna, Izmir para os Turcos, percorrendo a antiga Jónia, a região da Grécia Antiga que foi berço de Homero, o autor dos poemas épicos Ilíada e Odisseia, aproximadamente um milénio antes do nascimento de Cristo.

É comovente pensarmos a riqueza cultural que floresceu por entre estas pedras e estes caminhos e como a Europa e a Humanidade deveriam estar gratos a estes "artífices" sonhadores e criadores do pensamento moderno.

O caminho ainda é longo e permite-me recordar a noticia que li ontem sobre o encerramento da estação de televisão estatal da Grécia pelas mãos da imbecil austeridade "troikiana" de inspiração alemã.

Talvez a História pudesse ser um bom principio para nos dotarmos de mais respeito e implementarmos um melhor futuro e que nos abrangesse a todos.

Assim, talvez acabemos todos um dia num museu como o Pérgamo de Berlim, elementos mortos de civilizações antigas a dar brilho e cor ao poderio dos eternos senhores da guerra.

Hoje de manhã, antes de sair do hotel e tomando o pequeno-almoço que me foi preparado pelos Homens que oraram na madrugada, sorri para todos os Japoneses e Brasileiros com quem ainda me cruzei porque a diversidade de culturas é uma das maiores provas da riqueza da humanidade.

E quando queremos, há sempre uma forma de nos encaixarmos todos na paz sem perdermos a identidade.

Pela minha parte, dormi pelo menos uma hora na viagem de autocarro.

Perdi a visão de muitas laranjas, figos e romãs mas brindei à tolerância.

Comentários

  1. Inspiração não te falta mesmo. Mais um
    belo texto para leremos. Obrigado. Abraço. AR

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  2. CONTINUAÇÃO DE BOAS FERIAS
    RP

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