As virtudes dos abraços e os cansaços que se diluem num sono feliz


É quase meia-noite quando o carro entra finalmente no parque e sinto aquele típico estalar das rodas sobre a brita. À minha frente a imponente fachada do hotel agora quase apenas e só à mercê da lua em quarto crescente, a mesma luz impotente para me fazer matar saudades das roseiras que eu recordo, ladeiam o lago central.
Cheguei à Curia.
O dia começou cedo em Ponta Delgada com as nuvens e a chuva a insistirem tapar-me a vista para o Atlântico.
Depois, uma longa espera no aeroporto, o avião que chegou com três horas de atraso, a explosão de azul após romper as nuvens, e finalmente Lisboa, já ao entardecer.
A auto-estrada até Évora faz-se num ápice desde o aeroporto, e hoje nem há tempo para beber histórias das sombras com que o luar veste os sobreiros do meu Alentejo.
O pai está melhor, fala comigo enquanto brinco com ele entre as colheres de sopa.
Não resiste:
- Esta é a quinta colher que dizes ser a última.
Está definitivamente melhor.
À porta do hospital há amigos de Vila Viçosa e acabamos a falar de poesia.
É um facto que ela está onde mora a vida.
Devolvo-me ao luar, como uma sopa na Área de Serviço, e faço-me à estrada que vai ser longa mas que se encurta pelas palavras dos amigos; e esse nosso namoro que hoje fala dos abraços e das suas virtudes.
Sou um homem cansado mas feliz quando chego à Curia. Percorro sozinho os corredores do Palace com o soalho a ranger rompendo o silêncio e eu a sentir-me a chegar à montanha mágica.
Nem me fixo nas sombras para que tudo isto não ganhe um ar de Hitchcock ou de Agatha Christie, e eu tema que a meio da noite tenha que chamar o Tommy e a Tuppence Beresford para tomarem um chá comigo e juntos resolvermos algum homicídio.
Depois… finalmente uma cama.
Preparo-me, apago a luz e só me lembro de começar:
- Pai-nosso...
Se depois continuei a rezar foi já em algum sonho.
Há dias assim, cheios de tudo e com muitas cores; porque até mesmo não vendo o Atlântico e as roseiras da Curia, sei que passei por eles.
Mas o que importa em que nem uma só gota de energia fique por consumir e se desperdice, e que ninguém daqueles a quem amamos adormeça sem sentir que estivemos perto num abraço nascido de um querer intenso.
É isso que nos faz ganhar os dias porque o cansaço… esse dilui-se num sono bom e feliz. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM