Nós somos tecidos por pedaços de um amor inoxidável


Em arrumações, reencontrei há dias num armário da despensa uma pequena e velha lamparina de álcool já muito oxidada.
E quem guarda objectos da sua história, mais cedo ou mais tarde ganha o privilégio de contar muitas histórias.
Esta velha lamparina foi comprada pela Tia Maria na velha loja do Senhor Eduardo Pina, à Rua de Cambaia, e foi-me oferecida quando vim estudar para Lisboa há trinta anos e fiquei alojado num quarto que não tinha qualquer cozinha anexa.
Acompanhou-a uma pequeníssima cafeteira de alumínio que também ainda existe lá em casa, e a recomendação:
- Não quero que saias de casa sem teres a oportunidade de tomar uma caneca de leite quente.
E assim eu embebia um pouco de algodão em álcool, puxava-lhe fogo com um fósforo e aquecia o leite enquanto me preparava para sair, descer a Calçada da Glória e vir apanhar o Metro aos Restauradores, naquelas manhãs em que me ia apaixonando por Lisboa, espreitando-a em São Pedro de Alcântara.
A lamparina está hoje definitivamente inoperacional e oxidada, mas a história que me recorda é muito mais do que um velho pedaço de metal sujo e gasto pelo tempo; lembra-me que eu sou afinal o resultado de um entrelaçado de tantos detalhes simples de amor, mas daquele amor que resiste às humidades e às agruras, o amor que jamais oxida.
Os cuidados e a simplicidade que fluem tão naturalmente daqueles que muito nos amam.
E o sortudo que eu fui e ainda sou como alvo de tantos e bons mimos.
Na minha sala de estar tenho uma foto abraçado à Tia Maria no dia em que ela cumpria sessenta anos, 24 de Junho de 1969, e em que eu estava a dias de cumprir três anos.
Em quarenta e oito anos de vida é a minha foto de que mais gosto.
A preto e branco, só eu me recordo que a minha camisola era cor de mel, e isso é apenas um pequeníssimo detalhe comparado do doce que transparece dos nossos sorrisos serenos.
Não é por acaso.
E a lamparina?
Permanecerá no armário à espera que eu volte a limpar-lhe o pó e se soltem histórias de ouro… e que sabem a mel, tal como o mago na lenda do velho Aladino.  

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