“Que bem que se estava na praia”

A temperatura lá fora não desmente que é verão e reparo que a grande maioria das pessoas que enchem por completo a sala de espera estão vestidas como se estivessem em trânsito de e para a praia. Imperam as bermudas, os calções, as camisolas de grande decote, os chinelos e as havaianas.
Estou junto a um balcão onde se encontram duas funcionárias devidamente fardadas em tons de cinza e verde.
Estão as duas à conversa num tom de tal volume que é impossível não ouvir os relatos que uma dela faz sobre a manhã passada à beira mar:
- Que bem que se estava na praia.
De vez em quando interrompem a conversa para um carimbo, uma nova marcação ou então para se agarrarem ao microfone e num tom entre o asténico e o zangado, chamarem o próximo.
- Manuel da Silva. Gabinete setenta e oitoooo.
Sempre que alguém se aproxima e as faz afastar o olhar uma da outra, rapidamente preparam a metralhadora e os incautos utentes acabam invariavelmente fulminados pelas balas oftálmicas com que os seus olhares os trespassam.
E logo que podem regressam a:
- Que bem que se estava na praia.
Na sala há um plasma sintonizado na SIC Notícias e sem som, o que é sempre bom para ver os bonecos e tentar adivinhar o que as pessoas dizem através dos movimentos dos lábios.
Não fossem os rodapés com as chamadas de atenção e eu não “pescaria” uma.
Às cinco em ponto começam a transmitir a tomada de posse dos novos ministros.
Numa audiência na sala que eu poderia estimar em 100 pessoas, eu, apenas 1% parece estar a olhar para a televisão.
Cavaco Silva, o homem que depois de chegar à liderança do PSD apeou Rui Machete do cargo de Vice do Governo do Bloco Central, dá-lhe agora posse como Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros. O homem que nessa altura usava as páginas de “O Semanário” para os “abater” a todos, o mesmo que há três semanas afirmou ser irrevogável sair do governo, Paulo Portas, toma posse como Vice e não consegue disfarçar no gesto, o jeito de criancinha mal comportada que levou uma reprimenda em público.
Toma posse como Ministro da Economia, o homem da Super Bock que ao fim de dois anos de grande persistência consegue enfiar-se no governo por acção da “calçadeira” Portas, e um trio de jovens ministros saídos das “academias” das Juventudes Partidárias.
A cerimónia é rápida e não conseguiu prender a atenção de nenhum dos meus companheiros de espera.
Haverá meia dúzia a olhar para ontem, outra meia dúzia a olhar para o outro lado da janela, e a grande maioria assiste à novela:
- Que bem que se estava na praia.
Em Belém começa a fila de cumprimentos. Interminável.
Excepção a alguns que conheço, a grande maioria é composta por homens de fato escuro e mulheres louras, anafadas e com carteiras tão grandes que bem poderiam disfarçar no seu interior uma toalha de praia e um protector solar.
Não os conheço de vista mas até deveria pois imagino que sejam os tais “boys & girls” que vivem das nomeações, os tais que foram ali em acto de investimento na carreira, pessoas altamente patrocinadas por mim na rota Pagamento de Impostos – Salários de “Boys”.
Será que vendo-os a todos por ali e reparando que são tantos, não consegue perceber que não só, mas que é também por eles e pelos seus salários que nós não temos mais dinheiro para fazer compras?
Dava jeito.
Eu fui o único que acompanhei a cerimónia do princípio ao fim naquele jeito de cinema mudo com actores e malabaristas… mas a cores.
E aqui está Portugal.
A política é um circo, um aquário de seres desligados da realidade, sem palavra, um apetecível habitat alimentado pelo “motor” dos impostos dos cidadãos, os eleitores e contribuintes que já não podem ver os políticos.
E os políticos até agradecem que os cidadãos não estejam por perto e que só os conheçam pelo seu lado solar através dos cartazes das promessas eleitorais.
Apetece mesmo fugir e agora sou eu que penso:
- Que bem que eu estaria na praia.
Mas sem comichões que para isso já bastam estas.

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