“Culpado”
As
nuvens que persistentes se interpõem entre mim, o sol e o mar, revelam-me da cidade
uma estranha e inédita face, quando apenas o eco dos meus passos lentos na
calçada vazia de outra gente, rima com o voo alucinante e os gritos estridentes
das gaivotas que por sobre mim dão um claro prenúncio de tempestade.
Há
cadeiras empilhadas que esperam o verão para se espreguiçarem nos passeios
fazendo nascer esplanadas à sombra dos chapéus por ora fechados; há um ar
fantasma nascido da regra de portas e janelas cerradas por densas cortinas e
persianas; há montras vazias onde os manequins despidos têm apenas a companhia
dos sobrescritos que o inverno fez acumular na alcatifa junto à porta…
Sigo
“abrigado” pelas gargalhadas inscritas nas lembranças dos dias de verão, esse
tempo em que as pipocas se faziam em casa e até trepavam para a cabeça do Paulo
que tinha posto gel no cabelo para irmos à sessão da meia-noite ao cinema do
casino, o local das cadeiras estufadas e confortáveis onde eu e o Manuel sempre
dormíamos o primeiro sono vencidos pelo cansaço dos dias passados a correr
saltando as ondas.
E
por todas estas lembranças, e sentido na face a agradável e despudorada brisa
com aromas de sal; estaria por certo a sorrir no instante em que um rapaz à
esquina de uma perfumaria me rompe o sossegado passeio pela tarde e me entrega
um papel acabado de borrifar com o conteúdo de um frasco que carrega na outra
mão.
-
O senhor tem cara de gostar de perfumes da “Gucci”. E o “Guilty” assenta-lhe
bem.
Resolvo
brincar:
-
Tenho assim uma cara tão marcada de “culpado”? Deve ser da barba…
-
Não, nem pense nisso, até foi dos poucos que parou. A maior parte das pessoas
pensa que eu estou aqui a pedir algo, e foge de mim.
Sorrio,
agora de forma consciente, cheiro o pedaço de papel, elogio o aroma que coloco
no bolso de fora junto à gola do casaco, agradeço-o ao rapaz e sigo depois o
trajecto até ao jornal e ao café que me indicaram no hotel.
A
uma mesa de canto e na companhia de um casal de idosos que está na ponta
exactamente oposta à minha na longa sala, leio as gordas do Expresso, o meu vício
de sábado, enquanto a pequenos tragos, bebo a bica que hoje traz o aroma do
café acompanhado pelo “Guilty” que se solta da lapela.
Não
demoro e regresso ao hotel porque o trabalho chama por mim.
As
ruas seguem vazias e até o rapaz da esquina dos perfumes está agora abrigado
entre as portas da sua loja.
A
vida é esta tarde em que caminho carregando os aromas e as palavras que o
destino fez com se cruzassem comigo, não só os aromas e as palavras que
busquei, mas também todos os que são benefício dos passos dados em liberdade ao
ritmo guloso do imprevisível a que nunca gosto de virar costas.
Sorrio.
Agora já não só pelas lembranças de ontem, mas muito pelo presente que
para além de ti, o meu amor presente em tudo e em tantas palavras de amor; tem infinitos
prazeres escondidos numa insuspeita tarde cinzenta e de tempestade algures no
mar.
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