Os caminhos tecidos pela engenharia da vontade

No recreio da minha primeira escola em Vila Viçosa existia a oliveira que eu adoptei como avião, e havia uma zona de terra com muitas pedras que nós usávamos como carrinhos depois de termos desenhado as estradas, as bermas e os parques de estacionamento; um complexo processo de engenharia que consistia em fazer deslizar as pedras maiores pelos sítios onde o barro se mostrava mais vulnerável às nossas parcas forças de crianças com idades algures entre os seis e os nove anos.
Por estes dias de primavera, espreitávamos sempre a vinha da Horta do Reguengo que ficava do outro lado do muro, e contemplávamos as tulipas vermelhas que cresciam rebeldes entre as cepas, escutando mais tarde em casa, ao serão, a lenda das marcas do sangue do Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luis Filipe, assassinados em Lisboa quando regressavam de comboio desde a nossa terra. A lenda contada por cima do facto de alguém um dia se ter lembrado de estrumar a vinha com milhares de bolbos de tulipas abandonados e apodrecidos ao canto de uma qualquer arrecadação do Paço.
Às vezes, o professor levava-nos até à Varanda dos Namorados, em São Bento, ao Outeiro da Forca, aos Castanheiros, ou então até junto de qualquer ribeira que tivesse sabido beber a vitalidade do inverno, e aí na cumplicidade dos indefinidos e mágicos aromas do campo, íamos aprendendo coisas novas por entre números e palavras; e íamos começando a compor uma história para cada um de nós, que se queria única, para além de fantástica.
Um dia, e também neste tempo de primavera, percebemos que a história de todos nós tinha mudado para afinar com a liberdade, quando o professor nos explicou que deixaríamos de escrever “Redacções” para passar a fazer “Composições”. Deixaríamos de ser sujeitos passivos resignados à redacção de um presente considerado inevitável, e passaríamos a ser gente activa a pôr vontades, fé e pensamento no escrever da sua história.
No fundo, as palavras como os carros desenhando caminhos por entre a terra do barro que é a vida de cada um.
E que melhor sítio do que o campo, as searas, as fontes e as ribeiras; para nos inspirar na liberdade e para nos incentivar a avançar sem medos de encontro aos sonhos tecidos pelas nossas ambições e vontades?
Hoje almocei na rua num descaradíssimo e primeiro usufruto do sol da primavera.
Estive muito bem à sombra de umas oliveiras com estatuto de centenárias que criaram raízes pelo Alqueva e que agora decoram Oeiras. Sou irmão destas árvores pelo berço comum das nossas raízes.
Agora já não consigo trepar a uma delas para fazer um avião, e tão pouco consigo que a coluna me permita baixar para brincar desenhando caminhos por entre a terra; mas ali olhando ao longe o mar como antes bem de perto todas as ribeiras, eu senti a mesma vontade e a mesma garra de escrever por mim, a minha própria história.
Será por certo essa vontade genética que destrói todas as idades e passa por cima de qualquer tempo.
O segredo para nunca nos sentirmos velhos.
Ali, dei graças a Deus pela vida e pela liberdade, matei saudades de ser menino e terei sorrido sem que os meus colegas de almoço tivessem dado conta.
Confesso que então só senti saudades das tulipas a crescerem rubras por entre as cepas da Vinha do Reguengo. Afinal, elas serão sempre uma inspiração de rebeldia a acrescentar gosto e aroma ao tempo futuro que nunca desistirei de fazer meu. 

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