Os amigos são anjos, não porque tenham asas, mas porque nos ensinam a voar


Passei há pouco pela estante do escritório aqui de casa. Sei de cor todos os livros que me deste e que estão lá desde o verão de noventa e um.
Retirei e folheei alguns sem ler nada, porque as palavras que me acodem à lembrança são aquelas soltas nas tardes de domingo em que após a missa no Chiado e um Cozido à Portuguesa numa tasca algures na Bica, tomávamos o eléctrico 28 até aos Prazeres, para depois desde ali caminharmos até tua casa; tomávamos um chá e líamos Pessoa, Sophia, Antero, discordavas do meu fascínio por Ary, e marcávamos o romance que iriamos ler na semana a seguir… um problema quando os de Agustina chegaram ao fim.
Depois eu partia porque os meus camaradas esperavam por mim no Cais do Sodré e havia que cumprir mais uma semana de recruta em Tavira. Partia mas sempre com uma caixa de biscoitos que me tinhas preparado e que eu arrumava no saco entre as palavras de Agustina ou Saramago.
E também entre o eco dessas palavras que insistias sempre em repetir:
- Joaquim nunca lutes contra o que és e tens em ti, descobre-te no mais íntimo da alma e constrói sobre isso a tua casa. Tenho a certeza de que serás eternamente feliz.
Os amigos são anjos, não porque tenham asas, mas porque nos ensinam a voar.
O tempo, essa costumeira desculpa que sempre usamos para justificar as distâncias que vamos abrindo entre nós, afastou-nos das tardes de domingo e conduziu-nos, mais de duas décadas depois, a apenas três telefonemas anuais: no teu aniversário, no meu, e no Natal.
Talvez por tanta poesia, pusemos de parte o pragmatismo e cuidámos ser imortais, insistindo em adiar há muitos meses, um chá em Lisboa para eu poder entregar-te os meus livros e falar-te das minhas tantas poesias de amor que te mantinham intrigado.
Já não poderei fazê-lo…
Soube ontem que partiste há dois meses esvaziando-me o Natal daquele nosso costumeiro abraço.
Irei ter tantas saudades tuas daquele Verão de noventa e um.
Devolvo os livros à estante mas permanecem as tuas palavras na minha lembrança…
O tempo acaba quase sempre por revestir de saudade as palavras doces que um dia recebemos de alguém, as palavras que eternizámos em nós como tijolos que nos transformaram na casa feliz que somos.
A casa que sempre insististe em prognosticar em mim.
Vejo-te a sorrir e sei que aquilo choro agora é muito mais por mim do que por ti…
Há tanto de nós que morre na partida de um amigo.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM