As heranças por entre os “passos” trocados

Sobre o altar e numa folha disponibilizada pelo pároco e pela catequista, o meu sobrinho João assina o nome dele e, na linha imediatamente por baixo, assino eu, assegurando dessa forma que ele está preparado para receber o baptismo.
Um momento muito simples e informal por entre mais oito pares de crianças / padrinhos, mas que não consigo deixar de sentir como uma passagem de testemunho entre a minha e a sua geração, porque a fé fará sempre parte desse pack das heranças da alma.
Na igreja de arquitectura demasiado minimalista e com aquele toque de “provisório” que nós, os “Portugueses suaves”, toleramos como “definitivo”; eu vou jogando cumplicidades com o João através de sorrisos e umas piscadelas de olho. De aí a muito pouco, o padre irá enredar-se e tropeçar nas suas próprias palavras quando tentar explicar às crianças a transfiguração e o rosto de Jesus Cristo.
Não é fácil…
O sol do meio-dia beija Lisboa de uma forma tão despudorada e sensual que, acabada a missa e já sozinho, não resisto e vou até ao Chiado.
Ao ser devolvido à superfície pelo elevador que me resgatou do parque de estacionamento do Camões, vejo-me envolvido por um grupo de Ucranianos que ali à sombra do poeta que um dia escreveu que “lágrimas tristes tomarão vingança”, gritam sem reservas e medos, reclamando a liberdade que lhes permita vingar tantos dias tristes.
Estas pedras e estas ruas conhecem tão bem estes gritos e estas vontades… que sejam para eles um bom prenúncio.
Desço a Rua Garrett por entre artistas, malabaristas, homens estátua, gente sem-abrigo, clamores de ajuda, riso, festa, a babel de muitas línguas, gente que diz ter fome, gente agarrada a gelados em cone de dimensões XL, velhos, novos, trôpegos, gente maltrapilha com os pertences todos em sacos de plástico, ali mesmo ao lado de gente carregada de mais sacos com tanta coisa que até não era precisa mas que não resistiram a comprar…
O sol continua a beijar Lisboa, o Tejo sorri de um intenso azul sempre que o espreito à direita ao dobrar uma esquina, e à mesa do café onde entretanto me sento com dois amigos apaixonados, é inevitável falar de amor, até porque os olhos deles, uns para os outros, não se cansam de lembrar que de amor estão cheios os seus dias.
O café ajuda a soltar a conversa que flui ligeira até ao momento em que me devolvo ao sol de Lisboa e subo novamente a Rua Garrett.
Há polícias nas esquinas a controlar o trânsito e soa forte o bombo de uma fanfarra: a procissão do Senhor dos Passos acabou de sair da Igreja de São Roque e desce e Misericórdia antes de mergulhar nas ruas do Chiado e percorrer o caminho até à Graça.
Desfilam ouros, pratas, vaidades e capas…
E a imagem do Cristo carregando a cruz avança ao ritmo do bombo e também da banda militar que segue imediatamente atrás.
Os Passos de Cristo a cruzarem-se assim com os passos vagabundos das dores de tantos Homens que carregam a cruz do peso da fome em sacos de plástico que têm muito pouco mais do que nada.
Penso no padre da missa dos Olivais…
Gostaria de o ter agora por perto para lhe explicar onde anda por ali o rosto de Cristo e de como é tão fácil encontrá-lo na cidade; não aos ombros da vaidade dos Homens, mas comigo ali na berma do passeio quando o aroma nauseabundo da má fortuna abre uma clareira por entre a multidão mais empenhada em fazer vénias a um sumptuoso detalhe artístico que fala de Cristo, mas que nunca será tão verdadeiramente Cristo quanto o irmão dos sacos de plástico ali ao meu lado, com capa de serapilheira e sem brasão dourado.
Penso agora no João e de como ele à saída da missa fez questão de dar uma moeda a um homem que pedia à porta do Centro Comercial, um homem pobre que lhe beijou as mãos e nos desejou aos dois a maior sorte.
Os papéis estavam afinal trocados e talvez o João esteja mais habilitado e devesse explicar ao padre por onde anda o rosto de Cristo por estes dias dos Passos da Quaresma.
Pisco-lhe o olho mentalmente, sorrio e sigo…
Caminho por entre os “Cristos”, com a alma cheia de palavras de amor e sempre nesse inquieto impulso de quem vive e caminha de encontro à liberdade.
Eternamente, quero que seja essa a minha herança.

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