O “formol” dos afectos e a eternidade dos amigos

De repente e por conta de uma foto partilhada no Facebook, o serão de ontem acabou por me proporcionar uma agradabilíssima conversa com duas eternas amigas, companheiras de tantos dias de brincadeiras e cumplicidades na rua em que eu nasci em Vila Viçosa, exactamente a rua retratada na foto partilhada.
E a Rua de Três, como sempre chamaremos à nossa Rua Gomes Jardim, juntou-nos aos três numa animada e ciber tertúlia de amigos.
Sem que nos déssemos conta cruzámos as onze da noite a falar sobre o papagaio do Sr. Ezequiel, ave que por estar mesmo em frente à minha janela, cumprimentava a minha mãe com um ruidoso “bom dia” sempre que pela manhã ela abria a dita janela (e por conta dele a minha primeira palavra foi “olá”; a D. Palmira, que tinha nêsperas no quintal e que não era propriamente bem-disposta, um pouco como a vizinha Jerónima que nos molhava com água atirada da janela onde passava os dias, sempre que por brincadeira lhe batíamos à porta; as tardes passadas à porta da Avó Bacalhau, quando ela nos contava as histórias das revoluções republicanas em Lisboa e até nos pedia que palpássemos as balas que guardava como prova dentro da pele das suas mãos…
Eu, aqui desde esta casa que mira o Atlântico, juro-vos que até os cheiros desse tempo me acorreram ao serão, tão bem guardados que estão com toda a herança desses magníficos dias, na parte mais segura da memória.
E sorri muito.
Passaram quarenta e tal anos sobre esse tempo, tatuámos a nossa história de tantas coisas boas e às vezes dores tão fortes que eu nem ao de leve tento descrever aqui por palavras; mas a sensação que eu tive foi a de que pegámos na conversa no exacto ponto onde há décadas a deixámos, quiçá depois de um baptizado de bonecas feito ao portão sempre fechado do “Tap’um” onde se punha um repuxo durante as Festas de São Pedro, ou então quando nos cruzávamos por ter ido pedir um raminho de hortelã, salsa ou coentros a casa da Vizinha Sebastiana ou da Vizinha Marianita Ferreira.
A vida tatuada a festa e dores, mas entre nós, eterna, a essência desses afectos que nos moldaram definitivamente o ser por entre os dias simultaneamente tão simples e tão nobres.
E são os afectos, o “formol” que a tudo é capaz de dar marca de eternidade.
No dia em que fui fazer uma sessão à escola que frequentei em Vila Viçosa, um aluno mais destemido questionou-me:
- Não tem medo de um dia acordar e confrontar-se com a total ausência de inspiração para escrever o mínimo de qualquer coisa?
É pertinente, mas com amigos por perto há sempre inspiração para escrever e…para sorrir naqueles serões em que até não há ninguém em casa.
Basta estar atento e beber dos dias tudo aquilo que eles oferecem, muitas vezes tanta coisa que até nos pode parecer tão pouco importante.
São e Lavinia, muito obrigado. Foi muito boa a conversa no nosso pedaço de serão. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM