“Barriga cheia não acredita em fome alheia”

No dia em que recebi pelo correio um sobrescrito com alguns cupões de desconto em cartão para compras nos Hipermercados Continente, o patrão da SONAE, grupo detentor dessa cadeia de lojas, e personalidade com direito a nome na FORBES na lista das pessoas mais ricas do mundo, defendeu a legitimidade para os baixos salários em Portugal, tão-só porque eu e os meus e seus concidadãos, somos afinal “malandros” e não produzimos tanto quanto os Alemães, uma atitude supra-patriótica capaz de fazer muito pela economia nacional e atrair investidores, uma atitude “generosa” a justificar no fundo aquela ideia de que “com amigos assim, para quê ter inimigos”?
Mas de repente, e perante esta inevitabilidade da minha pobreza, os cupões fizeram lembrar-me as senhas das Conferências Vicentinas que permitiam receber o pão dos pobres; e o cartão de fidelidade à marca Continente que tenho na carteira passou simplesmente a ser um adereço de acesso à caridade do seu iluminado e endeusado patrão através de um processo certificado e com recurso a banda magnética.
E confesso que já não suporto ouvir os ricos a opinar e a falar da legitimidade da pobreza dos outros…
A senhora do Banco Alimentar que pode comer bifes todos os dias e que é heroína da generosidade por mérito dos sacos cheios de comida e da solidariedade que eu lhe despejo nos carrinhos de supermercado, fala de cátedra sobre a impossibilidade dos outros poderem ambicionar a comer o que quiserem.
O banqueiro presidente da instituição onde tenho as minhas contas e que alimenta as suas através das infinitas taxas bancárias que me “sorve”, vem dizer que o povo ainda aguenta mais austeridade, mesmo havendo gente que se depara já com gravíssimas dificuldades para sobreviver.
O empresário que detém a rede telefónica do meu telemóvel e que é dono destes supermercados onde faço grande parte das minhas compras, e onde deixo grande parte do meu ordenado ao pagar a comida para a satisfação das minhas necessidades mais básicas, chama-me “malandro” e diz que não posso ambicionar a mais ordenado.
Tudo se assemelha ao sádico prazer do conforto de estar com os pés bem firmes na terra, e não dispensar o atar de uma pedra aos pés dos que se afogam, quiçá para que desapareçam mais depressa.
E Portugal é hoje assim definitivamente uma terra onde impera o pecado da soberba lado a lado com o da hipocrisia, esta última expressa pela imbecil dicotomia e bipolaridade entre o parecer e o ser: políticos incompetentes a apontar a incompetência e a irresponsabilidade dos outros; descarados e perversos travestidos de moralistas e a vender avulso e barato, a moralidade aos outros; pretensos defensores dos pobrezinhos a banquetearem-se descaradamente com os prazeres do fausto e da riqueza, etc.
Sem pudor e sobretudo sem a manifesta vontade de alterar este ciclo e o seu ritmo que tanto convêm a quem está bem e confortavelmente sentado no paraíso.
A crise de muitos é a passadeira vermelha para o sucesso e conforto de poucos, sendo que o poder desses poucos é infinitamente maior que o dos muitos que agonizam “surfando” pela crise.
O poder dos Euros é muito superior ao poder da dor de qualquer Homem.
E se o povo diz que “barriga cheia não acredita em fome alheia”, acrescento eu que também não as respeita nunca.
Voltando à SONAE e relativamente aos cupões e ao cartão, talvez os utilize quando tiver mesmo que ser, até porque o respeito pelos patrões das outras lojas também não é lá grande coisa, mas descanse o senhor em causa porque nunca farei qualquer escândalo nos seus hipermercados. Afinal, os meus interlocutores por lá, seus funcionários e nossos concidadãos, merecem a minha total solidariedade pois para além de terem um ordenado baixo e de serem alcunhados de malandros pelo seu chefe mor, têm uma enormíssima desvantagem em relação a mim: têm um patrão sem vergonha. 

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