As viagens e os dias

A saída de Lisboa ao princípio da tarde com o GPS a apontar para o Porto e essa estimativa associada ao desejo de chegar cedo…
Auto-estrada A8, A17 e uma chuva anormal para um mês de Maio que já teve tanto sol de primavera…
Leiria, o rádio na Antena 1, um ruído estranho de metal sobre o asfalto e o carro a parecer ter vida própria numa espécie de emancipação e desprezo pela minha autoridade sobre o volante e os pedais…
Encosto na berma, ligo os quatro piscas e nem preciso olhar para os pneus, basta abrir a porta e aí está… tresanda a borracha queimada: um pneu está desfeito.
Praguejo as palavras do costume enquanto visto o colete reflector amarelo, que até nem me assenta mal, e me transforma de repente numa figura algures entre o avô do “Bob, o Construtor” e um genérico manhoso dos “Village People”.
Busco o triângulo mais ao jeito de Indiana Jones, pois nos três anos de convívio com esta viatura nunca tive oportunidade de aprender que o mesmo habita na porta da bagageira dentro de um compartimento onde já algumas vezes bati com a cabeça.
Ligo para a assistência em viagem, passa o carro de apoio das Auto-estradas do Oeste que me coloca a mim e ao carro entre cones de cor laranja, e fico a saber pelo simpático colaborador que o meu carro tem nas rodas uma porca especial, anti-roubo, e de que algures na viatura estará uma chave única e intransmissível para a poder abrir.
Novidade total.
Há três anos que viajo na companhia de uma porca especial e não sabia. Mantendo-me pela área dos suínos sempre posso dizer que são “secretos” os detalhes deste carro e de que é leve como as “plumas” o meu interesse por estas coisas da mecânica.
Menos mal que há um colega que via telemóvel me indica com sofisticadíssimos desenhos sonoros, o mapa do tesouro, e a chave aparece mesmo a tempo de o simpático senhor do reboque me mudar o pneu enquanto falamos do Benfica.
Sigo então a essa vertiginosa velocidade de 80 quilómetros por hora, com o objectivo apenas de chegar, atento a detalhes do caminho que antes nunca vira, indiferente aos impropérios que os camionistas terão atirado sobre a minha auto-estima enquanto me ultrapassavam e… chegando ao Porto, exactamente seis horas depois de ter partido de Lisboa.
Eu não sei se há dias que são como as viagens, ou se é o inverso, e são as viagens que são como os dias em que algo rebenta e as prioridades mudam tornando a pressa quase desprezível perante o acto de chegar, de conseguir algo.
Com essa enorme vantagem: com mais tempo não há detalhe fantástico do caminho que escape ao nosso olhar.
Entretanto já cheguei a Lisboa com pneus novos e cumprindo hoje os legais e habituais 120 quilómetros por hora. Não tivesse eu parado em Fátima para rezar e nada haveria para contar sobre a viagem.

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