Um passeio com “Cara de Mel”

Só a dona da pequena mercearia onde eu antes comprava os iogurtes para o pequeno-almoço parece ter resistido à “cirurgia plástica” que mudou a face da Rua da Escola Politécnica, em Lisboa.
Até os empregados da Cister já não são os mesmos que antes comentavam connosco as notícias do jornal durante os pequenos-almoços de domingo que pegavam sempre com a hora do almoço, e onde tinha sempre lugar cativo o saudoso José Medeiros Ferreira. Mantém-se na “velha” pastelaria a memória do Eça, e num esforço grande da minha memória, ainda consigo ouvir o eco das nossas gargalhadas quando comentávamos as proezas vocais da funcionária que nos vendia as peúgas na Poli, o pronto-a-vestir quase em frente à Imprensa Nacional; criatura que insistia em “arfar” salmos, dado que era ela dotada de tanto jeito para cantar como eu de arte para fazer ponto de cruz.
É tarde de sexta-feira e eu vou à missa das 18.30 horas na Capela de Monserrate, às Amoreiras. Há sol, há chuva lilás dos jacarandás e eu não resisto a um passeio lento e ao sabor das memórias por sobre as calçadas minhas cúmplices na minha chegada a Lisboa há precisamente 30 anos.
Deixo o carro no Camões e faço o rendilhado caminho pelo Bairro Alto que me faz sair na esquina da Rua D. Pedro V com a Rua da Rosa, ali junto à Pensão Londres e à Padaria São Roque, que tinha dos melhores Pães de Deus de Lisboa, uma tentação no meu regresso a casa depois de subir pelo Elevador da Glória.
Faltam-me as tascas, o talho, o lugar da fruta que cheirava a morangos maduros por esta altura…
E quando chego ao Jardim do Príncipe Real, falta-me o Professor Agostinho da Silva por ali sentado num banco, nunca se negando a um fantástico e sonoro “Bom dia”.
Agora há turistas aos milhares, lojas de design, um grupo de rapazes Espanhóis em comemoração de uma despedida de solteiro que se esquecem de que nós Portugueses, ao contrário deles que nunca nos percebem, entendemos todo o tipo de asneiras que eles soltam em Castelhano…
A rapariga que passou também estava claramente a pedi-las.
E ninguém dos que por ali estão poderá imaginar o que foi aquela rua aquando das explosões das bombas das FP-25 na Casa de Macau e na Associação dos Proprietários Lisbonenses. Para mim que tinha acabado de chegar do Alentejo, juro que teve ares de guerra mundial.
Espreito para o Jardim Botânico e não dispenso olhar a casa da minha velha cantina onde fui submetido a cinco anos de tortura com solha frita e um peixe amarelado decorado com molho de tomate.
Nunca pensei que um dia teria saudades, assim a olhar para lá.
Continuo calmamente, bebo o tal café na Cister e chego depois ao Rato e às Amoreiras.
Na missa por alma do Fábio, o padre fala da necessidade de ser alegre e acho-lhe graça quando aplica a expressão “Cara de Vinagre” como algo que nenhum católico deverá ser portador.
Os anjos recrutados pelo Céu falam-nos às vezes ao fim da tarde. E dão-nos bons conselhos.
Já corre uma brisa fresca quando faço o caminho de volta e por isso acelero o passo, não deixando porém de sentir saudades de um rissol quente comido na cafetaria ao lado do Fidalgo quando nos preparávamos para dar um salto a qualquer um dos bares do Bairro Alto que abriram portas com a liberdade para nos dar esse prazer supremo do alinhamento da vida com as vontades mais puras expressas pela alma.
O privilégio de nunca ter de negar o verdadeiro amor que se sente.
É quase Santo António e os homens penduram agora balões coloridos enquanto os turistas parecem alucinados na ânsia de registar tudo em fotografia.
Eu chego ao carro a sorrir e com uma despudorada “Cara de Mel”.
Afinal matei as saudades de tanta gente, das ruas e sobretudo de mim, nos anos passados num percurso único sem o qual eu não seria eu.
Saio do parque com o carro e desço a Rua do Alecrim olhando o Tejo e a outra margem; e juro a mim próprio: quando algures a morte me oferecer asas, raro será o dia em que não virei até aqui a matar saudades de Lisboa ao fim da tarde.

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