Romaria

O sol intenso do meio-dia parece empenhado em fazer “murchar” as cores garridas das bandeiras de papel que o povo esticou em cordas pelas fachadas da aldeia.
Lá no cimo, no campanário; o galo metálico, despojado de vontade própria e ao jeito de tanta gente, entrega-se ao vento, e por este, e por mais nada, toma rumo e posição.
Ao lado, num avantajado ninho tecido pacientemente com paus do campo, uma cegonha entrega o bico aos congéneres pequenos dos seus filhos que a esperavam, recolhendo o alimento que um dia os fará crescer e voar, dominando os céus; indiferentes por agora às badaladas do sino que ali mesmo em baixo sinaliza a hora da fé dos Homens.
Há gente, bombos e outros instrumentos de banda filarmónica espalhados pelas sombras das casas que têm rodapés de onde nascem pequenas roseiras. E o riso da festa ecoa pelos baixios que antecedem as searas já loiras do trigo, misturando-se mais além com o fumo do lume já aceso para roubar às bifanas e às sardinhas, os aromas respectivos que já se espalham e se sentem no ar.
O interior da igreja é uma bênção fresca neste dia quente; e por ali, há andores de muitos e indecifráveis Santos e devoções, todos decorados com fitas, cera de promessas e muitas, muitas flores.
O povo ao redor dos altares murmura Ave-Marias como se algum segredo contasse, esquecendo-se de prolongar a oração dos lábios para o olhar, no instante em que entra algum forasteiro, e é tudo menos “católico”, o jeito de censura que os olhos manifestam conter.
Sorrio.
Soam foguetes, a banda agrupa no alinho que solta uma marcha afinada, há pétalas e papelinhos a voar das janelas decoradas com colchas de seda em tons garridos. No chão há o cheiro das ervas trazidas do campo que “choram” a sua identidade ao ritmo do insistente e massacrante passo dos Homens nas duas filas que ladeiam a procissão.
O povo ajoelha ao passar dos andores, e é como se Deus estivesse ali no cimo daqueles móveis altares adornados de ricas flores, e a marchar ao compasso da caixa e do bombo.
Estará Deus muito mais no íntimo de todos os que por ali estão, ajoelhados ou não, sujeitos ou não ao olhar ácido das “beatas” criaturas; e estará, estou eu certo disso, no cimo do velho campanário, na cegonha que a beijos celebra e insufla vida em cada um dos seus filhos.
Eu não tardarei a partir, seguindo ainda e sempre na cumplicidade do sol do meio-dia, entretidos que estão os Homens no seu esmerado louvor a Deus.
Na estrada, o carro passo junto à seara de trigo, e o mesmo vento que alinha o galo do campanário, faz nascer ondas amarelas debruadas a papoilas. As ondas que me abraçam na partida e que parecem dizer-me adeus.

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