Saídas limpas

Directamente da mesma sala onde há cerca de três anos José Sócrates anunciou oficialmente ao país que tinha negociado um excelente acordo com a Troika, Passos Coelho anunciou ontem que sairemos do programa de reajustamento no próximo dia 17 de Maio, de uma forma limpa, não deixando de evocar o 25 de Abril, que começa a estar para a política como o Santo António está para as desgraças do dia-a-dia; e tivesse estes meios D. Manuel I, e em 1498 teria usado iguais palavras de orgulho para anunciar a heróica chegada de Vasco da Gama à Índia.
Para além dos diferentes protagonistas donos do microfone há a registar que o então Ministro das Finanças Teixeira dos Santos, com ar esfíngico e mumificado, foi agora substituído por todo o elenco governativo onde se destacava o vice Paulo Portas com aquele crónico e muito confortável ar de quem acompanha um filho que tira e come burriés durante uma recepção chique, um ar ao jeito de “se eu estivesse no lugar de Passos Coelho faria bem melhor”, disfarçado com alguns forçados esgares de concordância com o discurso.
Dois/três partidos diferentes, dois governos e o mesmo destino na mesma sala; sendo que pelo meio estão três anos em que verdadeiramente nos “limparam” muita coisa, entre bens materiais e também a paciência. E este local do Palácio de São Bento acaba por concretizar a maldição expressa na toponímia de Lisboa, pois quem desce da Estrela e passa por São Bento acaba invariavelmente no Poço dos Negros, este último sem quaisquer conotações racistas mas prenúncio de muitos dias negros.
Os dias negros das dores do povo que são verdadeiros orgasmos para os poderosos “mercados” e que nunca têm tradução nas estatísticas: se um indivíduo tem quatro milhões de Euros e eu tenho zero, a média não deixa de dizer que cada um de nós tem 2 milhões.
As estatísticas e o valor dos juros da dívida de que falam os políticos, não expressam nunca as dores do desemprego, das carências alimentares, da degradação do Estado Social, da falta de perspectivas de futuro, da revolta dos reformados que aspiravam legitimamente a ter paz e dignidade como corolário de anos de trabalho, a dor da saudade e do desconforto de quem tem forçosamente de partir da terra e dos seus…
Essas, as dores, não chegam aos políticos por não conseguirem nunca furar essa camada autista e cega que os protege e que não lhes permite que vejam mais nada para além da ambição pelo poder.
O poder pelo poder por entre a camuflagem e o travestismo que transforma o vazio de carácter em tristes e bacocos heróis mediáticos.
Passados alguns segundos, as oposições reagem ao anúncio lendo longos textos escritos que comprovam que o guião estava pré-definido, e os partidos do governo aplaudem, tudo isso enquanto o país está entretido a festejar o campeonato ganho pelo Benfica, a subida de divisão do Penafiel, e enquanto as televisões se esforçam por encontrar e dar ao mundo as melhores e mais afinadas vozes cá do burgo, o que até nem está mal num assumido contexto de “dar música”.
O guião do poder em que todos assumem os seus papéis consoante a “cadeira” em que estão sentados, por entre esta sensação tão nossa de que ninguém realmente nos fala verdade.
A orfandade do povo contribuinte no vazio de uma esperança morta às mãos da incompetência e da impunidade dos políticos que fazem o permanente e despudorado apelo à amnésia da gente na hora de votar.
Saída limpa…
Eu gosto da expressão “saída limpa”, embora confesse que a designação “saída à Irlandesa” me resulta mais agradável pois sempre parece indiciar uma saída nocturna em Dublin ao som dos U2 a beber Guiness pelos pubs de Temple Bar.
Saída limpa…
Confesso que entradas e saídas limpas deste género fazem sempre com que me recorde daquelas pessoas que seguindo um velho hábito do Alentejo, têm os portados da sua casa a brilhar, mas só mesmo os portados, pois para lá das entradas e saídas limpíssimas pode existir uma casa com algum deficit de limpeza.
Saída limpa…
No meio de tanto lixo e tanta dor?

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