As mãos mártires de “Anne Frank” também são assassinas e capazes de matar crianças

Tem nome de imperador romano e uma propensão para falar que aliada à minha, nos coloca em diálogo logo desde a porta do hotel onde me foi buscar no seu táxi, para me levar até ao aeroporto da Madeira.
Naquela sequência que irmana as conversas com as cerejas, começámos por falar de teatro, depois Raul Solnado, a guerra e acabámos a falar do 25 de Abril de 1974.
Actualmente com 62 anos, o meu companheiro de viagem que tem a quarta classe mas que fala fluentemente quatro línguas por via dos anos em que trabalhou nos cruzeiros internacionais, fala-me desse dia de Abril na primeira pessoa, relatando como o serviço militar obrigatório no Regimento de Transmissões, na Graça, o tinha colocado a preservar “limpo” o corredor antes aberto pelas tropas de Salgueiro Maia ali pelas bandas do Terreiro do Paço.
Não resisto a perguntar-lhe:
- E teve a sensação de estar a mudar a História?
A resposta não tarda na forma de uma outra pergunta:
- E a História mudou mesmo?
E sente-se na obrigação de relatar como vai dura a vida pela ilha, a forma como os seus irmãos sobrevivem à agonia de não ter emprego na construção civil e de como cultivam a terra para conseguir umas batatas “biológicas” que vendem por fora do circuito comercial legal, para que o lucro não se vá todo com os impostos.
- Eu ajudo-os vindo à frente deles pelas estradas durante a madrugada para me certificar de que a polícia não anda por aí.
Continua:
- Sabemos que o que fazemos não está correcto mas se não for assim não há dinheiro para as necessidades mais básicas. Por força das circunstâncias somos contrabandistas dentro do nosso próprio território.
E a História, que muda sempre nos instantes em que chega a liberdade, parece agora quase igual à de antes por via do “pão” e do esgravatar que o momento impõe.
A fome mata e ressuscita regimes políticos, e a imbecilidade reinante no regime de agora apresenta o perigo de legitimar o muito mau, o péssimo de antes.
Quando tudo parece tão igual…
Eu falo-lhe então exactamente da liberdade e até do modo como os dois podemos falar sem medo sobre tudo e também sobre as nossas próprias dores, mas duvido que os benefícios por mim apresentados, o tenham convencido no momento em que chegámos ao aeroporto e nos despedimos desejando-nos mutuamente, muita sorte.
Não tarda e estou sentado na sala do restaurante do Aeroporto a beber uma Brisa de Maracujá com o olhar a alternar entre o azul do Atlântico e o negro, o muito negro dos dias de Gaza.
A História repete-se comprovando que o Homem nunca aprende nada com o muito mau do passado, em qualquer parte do mundo, tal como em Portugal.
Ou talvez seja genética esta miséria que nos deixa tristes quando percebemos que a esperança morre ou se apaga para que o ciclo passe sempre pela guerra, “legitimada” tantas vezes por esse estúpido estatuto de divindade, de santa.
A dor que nos entristece quando descobrimos que as mãos mártires de “Anne Frank” também são capazes de assassinar e matar crianças de uma forma brutal e cruel.
E a vítima faz-se carrasco no triste ciclo de uma História que tem ares de inevitável, mas que eu quero sempre acreditar que não o é.
Valha-nos a liberdade e a paz… e já agora, que não nos falte o pão.

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