Essa sementeira de afectos de onde colhemos a felicidade
A
avó Natividade tricotava botas de dormir com uma perícia tal, que ao serão já
conseguia continuar o seu trabalho, mesmo quando o sono a obrigava a fechar os
olhos. Ainda guardo umas na gaveta das meias, e usa-as sempre nas noites frias,
nunca deixando de me lembrar que era eu que muitas vezes lhe segurava as meadas
da lã para que ela fosse fazendo o novelo. Nessa altura, a avó contava-me
histórias e rimas que tinha aprendido em criança.
Crente,
benzia-se sempre antes de algum trabalho doméstico mais importante, como
amassar os bolos fintos na Páscoa ou mexer as carnes da matança que permaneciam
nos alguidares de barro. Dos bolos fintos saía sempre o meu folar em forma de
lagarto e com dois ovos cozidos, e da matança uns mini chouriços com que nós
brincávamos antes de os comermos entre as duas partes de um papo-seco à hora do
lanche.
Com
oitenta e seis anos ainda me confidenciava que aquilo que lhe provocava mais
saudades era levantar-se cedo nos dias de inverno para ir apanhar azeitona.
A
avó Francisca gostava mais de ceifar do que de apanhar azeitona.
Com
a mesma fé da avó Natividade, conseguiram as duas colocar-me o mais próximo da
santidade, pagando-lhes promessas vestido de Santo António e São Francisco nas
procissões de Nossa Senhora da Conceição. Íamos buscar os fatos a casa da saudosa
D. Lígia Cravo, e só as auréolas de metal pareciam querer fazer justiça à minha
genética não santidade, não encaixando nunca na minha avantajada cabeça.
A
avó Francisca gostava de me levar com ela para o campo nos dias em que ia lavar
aos ribeiros da Fonte Cebola, e aí, às vezes os dois sozinhos partilhando a
merenda por entre o cheiro a esteva, ia contando as histórias da sua vida tão
feita de generosidade; a mesma que a fazia bater-nos à porta e acordar-nos
quando em dias de feira não dispensava as madrugadas para nos comprar uma
camisa nova, um saco de torrão ou uma bola de serradura envolta em prata e
agarrada a um elástico que a fazia subir e descer consoante o impulso das
nossas mãos.
A
melhor compota que já comi era a Uvada feita pela avó, com uvas frescas, mel,
nozes e amêndoas.
O
avô Joaquim também nos batia muitas vezes à porta, mas muito mais ao fim da
tarde quando ia levar-nos para o jantar, tudo o que de melhor tinha encontrado
na horta durante esse dia. Às vezes e enquanto cavava a terra, encontrava
moedas antigas que guardava no bolso e me oferecia mais tarde para eu colocar
na minha colecção.
Com
o avô Joaquim aprendi a apanhar azeitona e a semear e colher todos os bons
frutos e aromas do campo. Eu gostava particularmente quando ele me levava até à
“Casa da Burra”, a arrecadação onde guardava todos os apetrechos, e quando me
apresentava um a um, todos os instrumentos e segredos que lhe permitiam
cultivar a terra.
O
avô Francisco era carpinteiro e por isso acariciava a madeira dos móveis como
se fosse gente, fazia réguas de madeira muito certinhas para levarmos para a
escola, contava-me como era a Florbela Espanca, com quem ele se cruzara muitas
vezes em pequeno, e todos os anos pelo meu aniversário me oferecia uma nota de
vinte escudos com o Santo António, que me permitia comprar tantas coisas que
hoje ninguém acredita se nos fixarmos no valor de dez cêntimos.
O
avô Francisco gostava de me trazer a passear a Lisboa e de passar comigo a
ponte e admirar o monumento de Cristo - Rei, sempre que apanhávamos o autocarro
na Avenida de Ceuta para irmos a Almada visitar a prima Naíca, que fumava muito
e aproveitava os maços vazios para fazer bases para colocar debaixo das panelas.
Hoje
é dia de São Joaquim e Santa Ana, avós de Jesus, e é por isso Dia dos Avós.
Eu
deixei-me ir pela memória dos meus com a certeza de que ninguém é feliz por acaso,
e de que eu sou feliz porque alguém com amor e infinita generosidade semeou em
mim essa mesma felicidade.
Um beijo especial de aqui para as estrelas onde agora vivem todos os
quatro que o fizeram de uma forma inesquecível.
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