O tempo oferecido pela generosidade do Outono

Não fosse a denúncia feita pela ausência de sol à hora do jantar e julgaríamos continuar no Verão a viver os dias quentes que pedem praia.
Mas chegou o Outono e agora, praia só ao fim-de-semana e na melhor das hipóteses. O regresso ao trabalho já ocorreu para a maioria das pessoas afortunadas que o mantêm, e os estudantes já estão “empenhados” nas actividades lectivas.
As férias, continuando a ser grandes, são agora muito mais pequenas do que antes, e nós, os que não sabíamos o que era ter na escola computadores com acesso à internet, uma mediateca, microondas para aquecer os folhados de salsicha, campos relvados para a prática do futebol ou água quente nos balneários do ginásio, beneficiávamos de um período de mais ou menos um mês que nos permitia fazer tranquilamente a transição entre a azáfama do descanso e das festas, e a emoção do regresso à escola.
Em Vila Viçosa, no jardim junto ao lago, à sombra dos plátanos de onde caiam infinitas folhas com matizes de amarelo e castanho, beneficiávamos então de tempo para longas conversas em que partilhávamos com os amigos as incidências do verão e íamos digerindo as turmas e os novos colegas que o novo ano lectivo nos reservava. Era o momento para narrar as emoções dos namoros de Verão e opinar sobre alguma peça de roupa mais extravagante ou o novo corte de cabelo que algum colega tinha trazido das férias e do seu contacto com barbeiros mais ousados do que os da nossa terra.
Sentíamo-nos todos muito importantes por irmos frequentar um ano mais à frente e porque nos aproximávamos do topo na hierarquia do liceu, tendo essa perspectiva do engrossar da multidão dos que eram mais novos e mais inexperientes do que nós. Existia tempo de sobra para preparar o assumir deste novo estatuto de mais seniores.
Também tínhamos tempo para preparar os dossiers e os cadernos com folhas novas e separadores coloridos com os nomes das disciplinas, recolhíamos nas papelarias umas folhas impressas com os dias da semana e as horas das aulas, os horários, que em geral faziam publicidade às marcas de material didáctico e que nos permitiam copiar facilmente o horário da nossa turma quando ele fosse afixado nos placards da escola, preparávamos a roupa para a ginástica, alinhávamos a pasta ou a mochila, e até tínhamos tempo, imagine-se, para decorar o dossier ou as pastas com as figuras dos nossos ídolos musicais que recortávamos da revista do Circulo de Leitores ou da Tele Semana.
Boney M, Village People, Abba, Dire Straits, Pink Floyd, Duran Duran ou os eternos Rolling Stones, tinham muito sucesso e frequentemente nos acompanhavam até às aulas numa afirmação da nossa modernidade e bom gosto musical.
À medida que as camisolas de lã iam emergindo nas gavetas das cómodas, sobrava-nos tempo para em casa ajudar em tarefas mais típicas do Outono como as vindimas, o pendurar dos melões na esperança de que chegassem ao Natal ou a logística da marmelada que acabava sempre exposta ao sol dentro de umas tigelas de louça ou vidro e com cobertura recortada de uma folha de papel vegetal.
E assim, de uma forma perfeitamente pacífica mas com energia a transbordar, “mergulhávamos” no primeiro período e quase sem nos darmos conta já estávamos a estudar no quente da braseira de picão posta por debaixo da nossa camilha ou a interromper o estudo à tardinha para ir até ao mercado comprar meia dúzia de castanhas assadas ao “Sr. Musgado” que juntamente com a mulher as preparava no seu carro de madeira onde assentavam os assadores de barro que agitavam violentamente para misturar o fruto com sal grosso.
Castanhas, São Martinho, Água-pé… desde aí e até ao Natal seria um salto muito pequeno...
Mas o Outono nunca será apenas e só um corredor de acesso ao Natal para quem vem do Verão e da praia.
Com menos horas de sol para olharmos para a rua, não deixa de ser interessante a perspectiva de mais tempo para abrirmos a janela com vista para… nós.
E ter aquele tempo que há muito achamos merecer.
Gosto do Outono e não só pelas memórias, o Outono é uma inspiradora estação que apetece viver.
E já agora, intensamente, que assim devem ser vividas todas as estações. 

Comentários

  1. "Uma árvore em flor fica despida no outono. A beleza transforma-se em feiúra, a juventude em velhice e o erro em virtude. Nada fica sempre igual e nada existe realmente. Portanto, as aparências e o vazio existem simultaneamente" Dalai Lama....gostei e partilhei. P

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  2. "Uma árvore em flor fica despida no outono. A beleza transforma-se em feiúra, a juventude em velhice e o erro em virtude. Nada fica sempre igual e nada existe realmente. Portanto, as aparências e o vazio existem simultaneamente"
    Dalai Lama

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