ANA CRISTINA

Sempre que saiamos do nosso velho liceu à Porta dos Nós, traçávamos uma diagonal no Terreiro do Paço em direcção à Rua dos Fidalgos e parávamos algures nesta linha traçada pelos nossos passos, para contemplar uma senhora nogueira, árvore sem idade, que com altivez suplantava o muro branco caiado que unia o Paço Ducal ao Convento da Chagas, marcando a diferença numa praça onde impera a altivez algo mórbida dos ciprestes.
Era a nossa árvore, e por ela e pelas suas folhas presentes ou ausentes, saboreávamos todas as estações do ano, colhendo tantas vezes desse benefício único do pôr-do-sol, com os últimos raios a despedirem-se de nós por entre os seus ramos.
Quem nos visse um dia a falar para a nogueira seria até capaz de nos chamar loucos, desconhecendo que quem como nós cresce assim na companhia e na cumplicidade das árvores, aprende a não cair nunca, nem sequer quando morre.
E se cair significa negarmo-nos a nós próprios e matarmos os impulsos que são impostos pela vontade mais enraizada na alma, então não cairemos nunca.
Mesmo que nos chamem loucos, diferentes e excêntricos, nós estaremos sempre de braços abertos para viver cada pôr-do-sol no privilégio de saborear a mais doce liberdade.
Sempre com as contas em dia com o destino que nunca aceitamos imposto por nada nem ninguém.
Acontece ainda hoje tal como então, nesses anos em que crescíamos e em que por termos escolhido Inglês no Ciclo Preparatório, percorremos juntos toda a escolaridade com o Zé Joaquim, a Zé Ramalho, a Zé Bexiga, o Paulo Ratado e a Nônô.
Quantas histórias e quantos professores aterrados por tudo aquilo que de explosivo poderia sair das nossas cabeças inquietas que nunca deixavam de nos impor à boca: porquê?
Tivemos um professor de Português no oitavo ano que nos matava com o seu odor pois todos os dias despejava em cima dele um frasco do perfume “Amuleto”, do qual nunca mais pude nem sequer ouvir o nome, que conseguiu ter um sumário perpétuo ao longo de todo o ano: “Morgadinha dos Canaviais: leitura e interpretação”.
Íamos lendo o livro nas aulas e a diminuta formação dele em Língua Portuguesa apenas permitia que a interpretação fosse feita através do conteúdo, muito mais do que na forma, pelo que acabámos a discutir as vantagens dos colchões de penas, a sepultura fora das igrejas, etc.
Tu comias folhas de papel nas aulas dele e com uma convicção inabalável conseguiste convencer a criatura das vantagens de tal “manjar” sobretudo tendo em conta o necessário aporte de fibra que o organismo agradece para funcionar melhor.
Com a mesma convicção conseguiste convencer alguns amigos das vantagens de ingerir pétalas de rosa que colhíamos de uma roseira em tom grená que existia no pátio da casa da família Portas.
Fizemos teatros malucos como “O Discurso do Tonecas” em que tu eras par do João Paulo no casal Santos e Sousa, levando tu a estola de raposa da tua avó e ele, o fraque azul-escuro do casamento do teu pai; apresentámos trabalhos em folhas pretas escritas com lápis de cor branco, e ficámos por isso com calos nas mãos; fazíamos torradas colocando as fatias de pão ao lume numa frigideira; partimos uma chávena no celeiro do Sr. Domingos numa altura em que arrumávamos as caixas para montar a sede de um clube de amigos ao estilo da Enid Blyton; revirávamos as pálpebras só para amedrontar uma professora que tivemos no Ciclo Preparatório; recorríamos ao “The wall” dos Pink Floyd para “chatear” os professores mais aborrecidos; procurávamos subterrâneos e tesouros escondidos em todos os recantos do Convento das Chagas; inventávamos histórias de arrepiar que quase convenciam toda a gente nessas tardes quentes de Vila Viçosa em que bebíamos refresco de café e comíamos uma fatia dos bolos que mais ninguém faz como a tua mãe…
Ríamo-nos muito na maior cumplicidade e, com a companhia das árvores e do campo por onde passeávamos, nunca virando as costas à ousadia dos sonhos, que ainda hoje, eu por palavras e tu por traços e cor, soltamos sem medo porque são parte integrante de nós.
Um dia, na altura em que transformaram o Convento das Chagas em Pousada de Portugal, abriram um portão junto à nogueira e deixaram ver que junto a ela passa uma ribeira que corre todo o ano para alimentar o “viço” que dá nome à nossa terra.
Passei então a conviver de perto com o tronco da nossa árvore e a alimentar-me da paz que o som da ribeira me transmite.
A ribeira que nunca pára, que vive uma crónica inquietação, é afinal fonte de paz.
É como nós.
Estamos em paz quando estamos inquietos, algo que só soa estranho a quem não nos conhece.
E siga a nossa amizade.
Parabéns Tina. 

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