Os despertares violentos

Se o meu despertar se inicia diariamente às sete em ponto com um toque de telemóvel que me consegue irritar a qualquer hora do dia quando o escuto nos aparelhos alheios...
Se prossegue com um duche de água morna que nos “dias sim” consegue arrancar-me algumas notas musicais de “O anzol” dos Rádio Macau e nos “dias não” das “Sete letras” da Simone com poema do Ary dos Santos (“Esta palavra Saudade…”) …
Se tem um impulso muito positivo durante a degustação do pequeno-almoço, onde por entre a torrada e o copo de leite invariavelmente frio vou por vezes conversando com um amigo também “madrugador”, trocando mensagens com recurso ao i-pad que coloco religiosamente à minha frente…
Verdadeiramente o processo de acordar só se conclui quando me coloco perante o café ao mesmo tempo que vou folheando o jornal que a senhora da pastelaria cedo trouxe do quiosque.
E há notícias que conseguem levar-me a um estado adiantado de vigília de uma forma mais rápida do que a trimetilxantina, a conhecida Cafeína, veiculada pelo meu café.
Às vezes pelo espanto e pela dimensão extrema e inusitada do surreal por detrás da própria notícia.
Hoje fiquei a saber que a Angela Merkel utilizava um equipamento de esqui oriundo da “sua” Ex - República Democrática Alemã (RDA), com vinte e cinco anos, na altura em que sofreu o acidente que lhe provocou a fractura recente da bacia.
Esta descoberta faz acordar qualquer um…
Afinal é fácil de entender que a Europa esteja toda “fracturada” porque esta Excelência não dispensa os métodos da RDA, e se o betão do Eric Honecker um dia veio abaixo, vamos lá construir um muro imbatível para uma separação permanente e muito mais eficaz entre os ricos e os pobrezinhos, essa gentalha de cabelo castanho ou preto.
E ainda sorria amarelo pela descoberta quando me deparo com a notícia de que na Arábia Saudita, uma organização chamada pomposamente de “Centro para o Diálogo Nacional” que foi criada para auxiliar o Rei Abdulaziz, concluiu que o excesso de maquilhagem das mulheres é responsável em 86,5% pelo aumento dos casos de assédio cometidos pelos homens.
O rímel, esse terrível assassino… e os Sauditas que até são tão amorosos e não gostam nada de mandar piropos às mulheres!
Esta dá para rir.
Já terminei o café mas ainda tenho tempo para ler a notícia de que o cinema Londres vai dar lugar a uma loja chinesa, e não sei como é possível que a transformação do que quer que seja numa loja chinesa ainda possa ser notícia de jornal.
Afinal, é algo tão banal como ter sede no deserto.
Mas aqui não sorrio.
O primeiro filme que me ocorre quando penso no Londres, essa sala de cinema em que as cadeias nos faziam dar um estranho e lento mergulho de costas alguns segundos depois de nos termos sentado, é o “Amadeus”, de Milos Forman,
E nunca imaginei quando ali vi este filme algures no inverno de 1985, ainda no tempo da RDA, que ele se instituísse como uma profecia concretizada quase trinta anos depois num requiem composto por cima dos nossos despojos para a festa do nosso lindo enterro.
Já chega.
Fecho o jornal, despeço-me da senhora da pastelaria e saio para a rua sentindo o ainda gratuito, mas não sei se ainda não chinês, ar que tenho para respirar.
Já vou despertíssimo…
E no meio de tudo isto, o irritante toque do despertador, afinal, não doeu nem dói mesmo nada.
“Esta palavra saudade…”.

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