CONCEIÇÃO

Modernos e sempre muito à frente do nosso tempo, passámos grande parte das férias do Natal de 1981 a ensaiar uma dramatização do poema de Jorge de Sena “Natal de 1971” (“Natal de quê? De quem?”).
Com os timings definidos para a música e para o texto de cujos versos distribuímos por todos, definitivamente a parte pior foi a gravação das nossas vozes. Foram tardes inteiras passadas ao redor das aparelhagens existentes nas salas de toda a gente, e havia sempre alguém que não dava a entoação certa, que tossia, que dava uma entoação apatetada que nos fazia rir, alguém que se esquecia de entrar no tempo exacto…
E acabávamos sempre a rir, a fazer grandes lanches e a programar nova sessão para o dia seguinte.
Mas um dia conseguimos terminar a “banda sonora” e a encenação que fizemos para os nossos pais e amigos na Igreja das Chagas resultou num rotundo sucesso.
Tu entravas ao som de uma música muito alegre, vestida de palhaço e a brincar com uma caixa enorme que simulava um presente. Ao abrires a caixa, a música “entristecia” e surgiam então quatro amigas vestidas de negro que ofereciam gestos e poses às palavras do poema que nós, verdadeiros “Mários Viegas” da Planície, dizíamos afinal tão bem.
Até conseguimos desgrenhar e vestir de preto a nossa querida Irmã Irene.
Fui buscar esta história e pu-la aqui no dia do teu aniversário porque esta encenação “encarna” exactamente o inverso do que é a tua vida… e afinal um pouco a vida de todos nós, os amigos que um dia ousámos sonhar juntos num grupo a que chamámos Sementes de Esperança e do qual tu foste a primeira presidente eleita.
Os “anos do palhaço” e da música alegre, inevitavelmente com muito Disco sound e Rock n’ roll nas inesquecíveis festas de aniversário (e as da vossa casa eram sempre as melhores) vivemo-los na expectativa de um enorme presente que surgiria algures no tempo quando crescêssemos.
As voltas que então demos à “caixa”, prefácio do que seriam as nossas vidas, foram em conjunto e no meio da maior amizade do planeta, nos nossos encontros nas quartas-feiras à noite na garagem do Padre Reia; nos encontros na Senhora do Monte da Virgem, na Serra d’Ossa; nos piqueniques na Fonte dos Castanheiros, na Tapada; dos passeios ao Bosque de Borba; na espera ao Papa João Paulo II agarrados às grades metálicas que nos puseram na Avenida; em Fátima nos Encontros Animação Nacional onde um dia subiste ao altar com o João Canha para de camisola amarela cantarem os versos da Diocese de Évora; na confecção de um bolo de aniversário com dezenas de quilos para comemorar os 2000 anos de Nossa Senhora, liderados então pela nossa querida D. Mananinha; nos Convívios Fraternos em Évora ou em Proença-a-Nova; nas Férias Missionárias…
Sempre e em tudo com a seriedade que nos ensinavam em casa e que era reforçada por esse inigualável beneficio do convívio com tantos mestres extra que a vida nos facultou: o Padre Zé Luís, o Padre Armando, a D. Bárbara Elisa, o Padre Simões…
E um dia crescemos mesmo e a caixa dos “anos do palhaço” abriu-se definitivamente sem que daí surgissem figuras negras, muito pelo contrário, surgiu a festa.
Espreito para a festa que brotou dessa “primavera” que partilhaste connosco, quando nos encontramos todos, e muitas vezes à mesa do Restauração para um café depois da missa das onze e meia em S. Bartolomeu.
A festa tem o teu sorriso, o do Luís, do Pedro, do Francisco e da fantástica Isabel, que apesar de não querer, para mim será sempre a “Mafalda Veiga do Carrascal”.
Quais gestos ou figuras negras?
Exactamente o contrário.
Porque, se é verdade que quem semeia ventos colhe tempestades, também sabemos que quem vive intensamente a primavera, jamais perde o benefício do “vício” de ter flores… até quando os dias são mais tristes e é inverno, ou quando a saudade se impõe e ganha o salgado gosto que lhe oferecem lágrimas.
Foi esse o nosso segredo: fomos imbatíveis na forma tão intensa com que enfrentámos a primavera.
São, muitos parabéns pelo teu aniversário e por estes afinal tão poucos anos relativamente ao muito que mereces viver.
E desculpa o título de “Conceição”, mas nesta ronda pela amizade em 2014 não vai haver diminutivos ou alcunhas, só nomes de baptismo, que eu bem quero fugir do meu Quim… Barreiros.
Para terminar não resisto a chamar novamente à liça o grande Jorge de Sena, mas desta vez com um poema (Ode ao futuro) que definitivamente tem muito mais a ver contigo e que por isso te dedico a ti, ao Luís e ao trio fantástico das vossas “flores”:
“Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.”
Algures em Vila Viçosa e ali para os lados do Carrascal.

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