Uma noite para guardar “cá dentro”

A fresca brisa que corre do rio chega até mim e beija-me incessante enquanto os passos vagueiam errantes pelo jardim no impulso que o olhar lhes impõe a cada instante.
Cheguei mais cedo à Praça do Império e deixo-me ir ao ritmo das cores que a fonte faz pela água erguer ao céu estrelado da noite de Lisboa, num desafio com a luz de recortes manuelinos que emerge dos Jerónimos, duelo único que me põe num estranho slalom entre tripés de turistas numa vasta babel de muitas e diferentes línguas.
Caminho como tanto gosto, na aparência de não ter ninguém, mas na efectiva companhia e de “braço dado” com uma intensa profusão de memórias… de muita gente.
Sozinhos, ganhamos sempre o extraordinário privilégio de caminhar com quem mais queremos.
A Margarida chegará depois para o jantar, que entre Benfica, muitas gargalhadas e umas estranhas bifanas industrializadas, nos alimentará.
E que estranho pecado esse o da indiferença e de nem nos termos sequer lembrado de ir comer um Pastel de Belém.
Não tarda muito até que, sentados de costas para o rio, nos deixamos embalar pelas palavras soltas pela voz da Mafalda Veiga no exacto tom que lhe dá o piano ou então as suas múltiplas guitarras.
O palco não tem imagens, somos nós que as construímos por sugestão das palavras e dos sentires; momentos, pedaços e detalhes de vida aqui cantados nas duas horas entre “colado a mim” e “para receber de aquilo que aumenta o coração”, respectivamente a primeira e a última frase do concerto, parágrafos de cantigas ou pedaços de vida que são legitimamente de todos nós pela insistência com que nos aparecem na nossa história de todos os dias.
E a menina que um dia se cruzou comigo na Quinta de Santo António em Évora num Convívio Fraterno, paredes meias com a Cartuxa e num recanto muito verde da Planície Alentejana, olha agora o Tejo de frente e canta Ary no “Cavalo à solta”, canta Luis Eduardo Aute “Al alba”, Mercedes Sosa “Solo le pido a Dios”, esquece os eternos “Pássaros do sul” mas canta a GNR “Pronúncia do norte” e cola a voz à de Sara Tavares para cantar os “Vestígios de ti”…
Quando não nos negamos a viver, os dias têm este condão de nos encher a alma e de nos tornar diferentes e maiores.
Sei do que cantas, Mafalda.
Segue fria a brisa do Tejo no seu contínuo beijo à gente que sai do Centro Cultural de Belém e que num irregular rendilhado humano tecido a passos pelo espaço iluminado da Praça do Império, busca a forma mais rápida de se devolver a casa.
Contrariando a rigidez dos músculos faciais, eu ensaio um tímido assobio, agora que sigo novamente só, mais uma vez apenas pela aparência de não ter ninguém a caminhar a meu lado.
Então, sinto a noite bonita, penso em ti e provo a saudade na falta que me fazem os teus beijos.
Ainda a assobiar, pisco o olho à lua… e sigo rumo a casa.

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