O anormal ali era eu


A pequena Jéssica, chamemos-lhe assim por inspiração do seu fato de treino cor-de-rosa com a “Hello Kity” da cabeça aos pés, é claramente uma princesa para o pai, que olha embevecido para aquele esplendor anafado ao estilo de uma “Morcela de Burgos”.
A mãe, precursora daquela forma extra lipídica de ser, parece ter andado a roubar roupa a gente que vestia três números abaixo dela, e os calções deixam-lhe as pernas à porta do casting para o anúncio aos melhores presuntos de Chaves. Bebe o café revelando umas unhas pintadas de vermelho mas já muito descascadas, não se percebendo muito bem se estão a meio caminho da acetona ou do próprio verniz comprado na banca da Feira de Carcavelos.
Há ainda um irmão com piercings e que rapou parte da abundância de pêlos das pernas para fazer uma tatuagem com uma figura imperceptível; mas esse, recostado na cadeira como se estivesse na praia, nem levanta os olhos do i-phone.
A mãe fala com o pai mas este só lhe responde com monossílabos emitidos de forma tão violenta que é como quem lhe atira pedras.
Mas ela insiste em falar-lhe enquanto ajeita os cabelos que estão tão bem pintados quanto as unhas.
Esta senhora e as tintas parecem ser duas rectas inevitavelmente paralelas de encontro ao infinito.
Mimos, o pai só tem para a “princesa” que come um folhado misto, não nos privando das intimidades do seu longo processo de mastigação intra cavidade oral.
Na televisão ao fundo do café, Passos Coelho parece dar explicações no parlamento relativamente ao caso Tecnoforma, mas o aparelho está sem som porque no ar soa Leonard Cohen em cuja música me concentro para usufruir de alguma paz.
Bastaram uns poucos minutos a olhar para o Primeiro-ministro para concluir que o som da televisão é dispensável e nem sequer é por eu saber ler nos lábios, os argumentos dos “nossos” políticos são-nos familiares e infelizmente pelo conteúdo, são demasiado previsíveis.
Por falar nisso, aposto que a família da Jéssica nem sonha que no seu país há um Primeiro-ministro, quanto mais que se chama Passos Coelho e que anda a tentar justificar recebimentos em cima de um pedido de subsidio de reinserção laboral após trabalho de deputado em exclusividade.
Eu acabo de tomar o meu café e saio para a rua a fim de regressar ao trabalho.
O acto normal de tomar uma bica?
Entre a TV e a cena à minha frente eu fico com sérias dúvidas.
Contribuinte certinho, sem direito a qualquer subsídio social de inserção seja para onde for, cabelo rapado a pente três e sem tintas, roupa com o tamanho certo, sem fazer escândalo e uma presença discreta.
Não…
O anormal ali era eu.

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