O choro da gente nos dias do dilúvio

É o silêncio que nos acompanha quando desde Campo do Gerês descemos até à Barragem. O lago, que nasceu por imposição da gigantesca parede de betão, é enorme, num elevado e grotesco contraste de azul com as altas montanhas de granito, mas a água, percebemo-lo, não pertence ali ao vale de Vilarinho das Furnas.
É segunda-feira, dia 12 de Agosto de 2013, faz hoje precisamente 106 anos que nasceu o grande Miguel Torga.
Assinalo a curiosidade quando já no regresso a Campo de Gerês entro no museu que guarda a memória da aldeia submersa em 1972, uma feliz “Arca de Noé” instalada pela Câmara de Terras do Bouro, porque é pelo privilégio das palavras do escritor que ficamos a conhecer a vida numa terra com uma organização e uma perspectiva única de comunidade e de partilha, gente simples, pastores na maioria, Homens detentores da suprema inteligência de quem é simultaneamente simples e generoso, gente que se dispersou pelos concelhos vizinhos quando em nome do desenvolvimento, a água chegou e lhes roubou o espaço das suas vidas, condenando-o à companhia do tempo passado, na exclusividade da memória.
E as geniais palavras de Torga, eterno escritor da terra e das gentes, fazem justiça a essa memória e têm o som do grito e do choro abafado de um povo.
Há alguns anos, em viagem pela zona de Mourão, resolvi ir conhecer a “nova” Aldeia da Luz que estava a ser construída para daí a pouco tempo receber os seus habitantes, pessoas que o lago criado pela Barragem do Alqueva iria obrigar a abandonar a parcela da planície que desde sempre tinha sido a das suas vidas.
Dali à “velha” Aldeia era um salto, e naturalmente senti o apelo do confronto com o espaço novo que acabava de ver. A água tinha já cortado a estrada que ligava a aldeia à igreja, os mortos já tinham ido à frente dos vivos abençoar a “nova terra” e a mudança dali estaria iminente.
Não esquecerei jamais a dimensão de tristeza no olhar das pessoas com quem me cruzei.
Fiz inversão de marcha e rapidamente fugi dali no impulso do desconforto de estar a invadir a privacidade de alguém no instante de uma dolorosa agonia. Porque, vê morrer muito de si, aquele a quem roubam a terra e a sua história.
Os “meus” olhares da Aldeia da Luz e as sábias palavras de Torga sobre Vilarinho das Furnas são afinal expressões da mesma tristeza. E o escritor foi como sempre, um mestre de palavras.
O mundo tem de avançar e o desenvolvimento é uma imposição e uma obrigação da inteligência do Homem que legitimamente procura a melhoria da sua qualidade de vida. Mas o desenvolvimento só faz sentido se for concretizado na garantia do respeito pelos valores do próprio Homem e de toda a natureza, da qual ele é apenas e só, mais um elemento.
Passos em frente por conveniência de ordem financeira, mas dados por sobre a negação do próprio Homem, da sua vida e da sua história, não são avanços, são mortes na queda de um abismo, cortes abruptos e inaceitáveis na história da humanidade.
Serão sempre etapas negras de uma patrocinada morte da Terra, o silêncio sobreposto às vozes e ao canto da natureza.

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