Pelos caminhos de Domingas Gregório

A subida à Portela do Homem pelo Gerês é composta de curvas e contra-curvas e dessa inesgotável expectativa das pontes nos poderem revelar à direita a beleza de uma queda de água.
Não podemos parar na berma, mas não nos importamos. No caminho, os metros que se seguem compensam-nos sempre em grandiosidade pela paisagem que “desperdiçámos” atrás na impossibilidade de uma fotografia. O campo impõe-se-nos à memória e dispensa todos os registos fotográficos.
Passados os edifícios que restam da antiga fronteira e entrando na Galiza, apercebemo-nos que a Serra é a mesma de Portugal, a via romana que cruzamos é a mesma de que ouvimos falar em Braga e a fala do homem que nos atesta o carro é exactamente igual à nossa mas com um ligeiro abuso do som “xis”. A única fronteira que parece persistir é a económica pois o litro do diesel é substancialmente mais barato.
Mas é breve a incursão na Galiza e, seguindo a nossa rota, cedo regressamos à pátria reentrando pelo Lindoso para depois cruzar o Rio Lima e subir ao Soajo.
Desde aqui e com destino à Senhora da Peneda, coloco-me inteiramente nas mãos do GPS e assim fica mais disponível o olhar para saborear a serra na sua plenitude.
É a primeira vez que cruzo a Peneda, e surpreendo-me desde logo pela imponência das montanhas onde a vegetação, frondosa no sopé, vai perdendo na altitude para o granito que em exclusividade e monopólio lhes oferece cúpulas esculpidas com formas que nos activam a imaginação no desenhar das mais incríveis personagens.
A vista é no geral um presépio que Deus abençoou com uma dimensão “giga”, e as pequeníssimas aldeias semeadas no verde são “poisos” irremediavelmente assinalados no mapa dos sítios a que eu terei de voltar.
De repente, uma curva da estrada revela uma igreja de duas torres colocada no cimo de uma escadaria de pedra: a Senhora da Peneda virou costas à Galiza e do seu altar mira todo o vale até ao Lima.
A festa foi nos primeiros dias de Agosto e estão ainda bem visíveis os sinais das promessas, despojos de uma fé grande expressa nos pedidos e da gratidão dos muitos fiéis que por ali passaram.
Mas Agosto continua e são os donos dos muitos carros de matrícula estrangeira estacionados nas proximidades do santuário que estão de joelhos no interior da igreja. Mulheres de trabalho e homens de barba rija em atitude despojada de filhos aos pés da pequena imagem da Virgem.
Conta a lenda que em Agosto de 1220, a Virgem apareceu a uma pastora, primeiro na forma de uma pomba branca e depois na desta mesma imagem, pedindo-lhe que aqui mandasse construir uma igreja. A criança que cuidava aqui do seu rebanho de cabras comunicou esta intenção na sua aldeia mas ninguém acreditou nela. “Só vendo”, afirmaram ao melhor jeito de São Tomé.
Transmitido o resultado destes contactos na visita seguinte, dispôs-se a Senhora a um milagre solicitando à pequena que viesse o povo à sua presença e viesse também uma paralítica que vivia na aldeia.
Assim fizeram e a mulher, de nome Domingas Gregório, começou a andar normalmente a partir desse momento tendo a igreja sido então construída.
Anos mais tarde e já com o templo terminado, aparecia aos peregrinos um enormíssimo lagarto que lhes perturbava o caminho até ao Santuário. A Virgem entrou então mais uma vez em acção e transformou este lagarto em pedra e ainda hoje quase toda a gente o consegue ver na forma de uma rocha que está por ali.
O povo, as suas lendas e uma interessante recorrência no que aos pastores, os verdadeiros donos e senhores dos campos, diz respeito
Fazendo fé na lenda, deve ter sido bem difícil o caminho da Domingas na fase pré-milagre, por certo às costas dos seus conterrâneos, e imagino como se terá vingado e pulado por entre as urzes no caminho de regresso a casa, não resistindo por certo a provar as inúmeras amoras que ainda hoje me aguçaram o apetite sorrindo-me pretas desde as silvas.
Até a mim, com GPS, estrada e carro, hoje se me fez longo, o caminho na ida.
E breve foi o regresso como sempre acontece em relação aos locais que no mapa dos afectos marcamos como nossos passando a estar nas órbitas mais próximas de nós. O que se gosta, à semelhança de quem se gosta, nunca está longe de nós.  
E assim, eu, um assumido homem das planícies, voltei apaixonado pela Peneda.
Para quem nunca reparou, este é o verdadeiro segredo de Portugal, a raiz que nos sustenta como nação há nove séculos: nós não somos apenas de onde nascemos, somos da terra que sentimos nossa.
Nossa é toda a terra desse sacro rectângulo que une a Peneda a Sagres e Leiria a Monfortinho, ou tão-só, Portugal.
Na geografia com na vida, as fronteiras são sempre linhas desenhadas pelos afectos sobre um território que pode até conter infinitas semelhanças, porque uma pátria é sempre definida pela alma.

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