O verão mata sempre a neve da serra

Decorria o ano de 1986 e acreditávamos estar a celebrar o 2000º aniversário de Nossa Senhora.
Como sempre acontecia, iríamos participar em Fátima no Encontro Animação Nacional dos Convívios Fraternos, algures num fim-de-semana de Setembro, e nesse ano estávamos encarregues da preparação de uma Celebração da Palavra que iria decorrer no Centro Paulo VI e em que no final cantaríamos os parabéns a Maria. Para tal idealizámos quatro velas gigantes contendo cada uma, um algarismo, que ao jeito das congéneres dos bolos de aniversário subiriam ao palco pela mão de quatro amigos.
Eu e o Manuel investimos largas tardes das nossas férias na construção das ditas velas que preparámos com uma base de esferovite forrada com papel de cenário pintado com os tons de uma vela real de cera e a respectiva chama acesa. No sótão da D. Catarina, entre tintas, colas e sobretudo muita conversa, aproveitámos por fazer sauna e suar por efeito dos quarenta graus do Alentejo ampliados naquele andar, “o primeiro a contar vindo do céu”.
Na véspera da partida pedimos ao avô do Paulo Quinteiro, proprietário da loja Singer, uma caixa de um frigorífico e acondicionámos as ditas velas que na manhã do “embarque” foram colocadas no tejadilho do autocarro que enchíamos sempre com cerca de 50 pessoas, onde se incluíam os nossos familiares. Para quem convive com os recentes autocarros da Rede Expresso talvez não seja desperdício recordar que os desse tempo levavam as mercadorias no tejadilho cobertas por uma rede, sendo fácil a subida ao topo do autocarro através de uma escada situada na traseira do mesmo.
A viagem decorreu normalmente, pelo menos no interior do autocarro, mas na paragem em Abrantes para o pequeno-almoço, feita uma verificação às velas, verificámos com surpresa que elas tinham voado e que algures entre Estremoz, Avis ou Ponte de Sôr, poderia haver sobreiros enfeitados a celebrar os dois mil anos da Virgem.
Restava a caixa do frigorífico tristemente vazia.
Mas, teria de haver velas, e por isso não perdemos tempo e logo em Abrantes procurámos uma papelaria e comprámos papel de lustro de várias cores e colas.
Na paragem seguinte, em Tomar, na zona do jardim, ninguém se dispersou, subimos ao coreto e com a ajuda das cinquenta pessoas do autocarro, motorista incluído, construímos quatro velas que tinham por base as faces de cartão da caixa do frigorífico, onde colámos o papel de lustro recortado com a ajuda das tesouras que as senhoras tinham na mala e os canivetes que os homens transportavam no bolso.
Foram estas velas, magníficas, que subiram com êxito ao palco do Centro Paulo VI nessa tarde de sábado perante milhares de pessoas.
Esta história que hoje vos conto aqui é revisitada inúmeras vezes com emoção quando nos juntamos à mesa do café, nesse grupo de amigos que mantemos eterno e à dimensão das nossas vidas.
Nunca saberemos explicar como as velas romperam a rede do autocarro enquanto ele cruzava a planície, mas sabemos que esse “infortúnio” nos proporcionou um raro momento de união e a demonstração prática de como essa união nos conduziu por entre as dificuldades até à concretização do nosso objectivo.
É sempre assim.
E a pobre caixa vazia do frigorifico que tinha o destino do lixo e com a qual nos quedámos foi afinal o suporte para que a obra acontecesse.
Tantas vezes nos sentimos assim, perdidos e na companhia de um quase nada que afinal pode ser tudo.
O verão mata sempre a neve da serra mas dessa morte surge a água fresca que nos dá alento para caminhar até ao topo seguindo a rota da fidelidade aos nossos sonhos.
Desde aí de cima, vistos do espaço da nossa realização e da nossa felicidade, tudo o que o tempo foi deixando para trás e todos aqueles que se foram auto-excluindo das nossas vidas, têm a ridícula dimensão de pedaços muito pequenos, parágrafos irrelevantes da nossa história de sucesso.
Com fé, garra e com os verdadeiros amigos, o pouco que pode parecer que nos resta será sempre tudo o que precisamos para o sublime prazer de afirmar: consegui!

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