“Arranjem-nos a água…”

Deixo o mar e cruzo o Alentejo com o sol a pique pela hora do meio-dia.
A imperial solidão dos montes, a espera dos sobreiros, o tom de ouro do feno que preserva em si a eterna genética rubra das papoilas, o olhar perdido pelo horizonte que parece não ter fim, enquanto a alma relembra a sede das árvores de Florbela, e o corpo, mais do que tudo, pede uma gota de água fresca “colhida” algures numa fonte, daquelas do campo que são guardiãs de histórias de amor.
Naquela casa que se avista quase a chegar à aldeia da Messejana, ali muito próximo de Aljustrel, pararia eu agora se pudesse para a frescura de um Gaspacho em festa de orégãos, daqueles que o Tio Filipe preparava sempre que vinha do campo e que nós repetíamos voltando a atestar a malga por duas e três vezes.
Só nós Alentejanos e por entre este calor, reconhecemos que esta sopa é uma necessidade e um prazer supremo nestes dias quentes de verão.
Mas hoje sigo e fico-me pela vontade.
Mais à frente e por entre os olivais, consigo vislumbrar a Igreja de Nossa Senhora da Assunção, ou Nossa Senhora de Entre as Vinhas, um templo barroco e imponente que as gentes regressadas do Brasil importaram para aqui matando saudades da “colónia” que lhes ofereceu prosperidade.
No meio do campo e de quase nada se podem fazer jóias assim.
Assalta-me depois à memória a história da Praia da Messejana, esta aldeia aqui bem no interior da planície.
Por alturas da primeira república, algures pelo ano de 1920, ganhou protagonismo um homem desta região chamado Brito Camacho. Os seus conterrâneos reconhecendo o seu poder de influência, estabeleceram uma longa lista de solicitações com melhoramentos para a freguesia, que lhe entregaram numa sua visita a casa.
Depois de os escutar atentamente e depois daquele extenso rol de pedidos, Brito Camacho usou do humor à boa maneira Alentejana e perguntou-lhes se não queriam também uma praia. Os interlocutores não se deram por vencidos e responderam:
- Arranje lá a água que a areia arranjamos nós.
Pelo Alentejo nunca necessitámos passar procuração para alguém nos inventar as anedotas.
Hoje e nesta tarde de sol intenso, eu prossigo o meu caminho e não tardo a chegar ao rio que é quase sempre o nosso destino, e que nos oferece esse doce privilégio de Lisboa: o Tejo.
Reencontro o mar na vista da minha janela e deixo-me ir pelo que resta de tarde, com os sabores do Alentejo a fervilharem num Sericá que partilharei à noite com um grupo de amigos por entre palavras e afectos num jantar que será a coroa num longo dia de viagem com os pensamentos e as lembranças.
Passa pouco da uma da manhã quando regresso a casa e se cruza à minha frente o voo de uma coruja.
Diz-se pela minha terra que estas aves, habitantes das torres das igrejas e de lugares inóspitos das cidades e dos campos, carregam em si o mau agoiro e um sinistro prenúncio de desgraça; mas um homem que vai aqui feliz e com o coração já confortado pelas palavras de um beijo de amor, pode lá pensar em maus agoiros…
Sigo e aposto que adormeço a sorrir por entre o cansaço.
Os dias felizes são como as praias, e nem sequer precisamos que nos arranjem a água, somos nós que preparamos tudo: água, areia, sol…
Às vezes com muito pouco mas com muita força.
Da mesma forma que de um dia com uma viajem terrível numa auto-estrada com milhares de carros e gente, se consegue às vezes escrever uma história como esta.
Um bom domingo para todos.

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