O “Basto” e outros heróis e santos (Férias – Dia 7)

Nunca saberemos onde foi o ponto de viragem, aquele instante em que a mais pura realidade ganhou um romanceado e heróico estatuto de lenda.
Talvez "O Basto", enigmática figura imortalizada na pedra e cujo nome dá apelido a estas terras (Celorico, Mondim e Cabeceiras), não seja mais do que uma simples pedra tumular de um qualquer soldado lusitano; mas bem melhor fica a “História” se lhe chamarmos Hermígio Romarigues, um guerreiro monge do Mosteiro de São Miguel de Refojos, que comandando as tropas conseguiu defender o Mosteiro do ataque dos infiéis, gritando com valentia e junto a uma ponte:
- Até ali, por São Miguel, até ali “Basto” eu.
E a estátua do soldado lusitano, para além da lenda, ganhou ainda uma nova cabeça com direito a um farto bigode, e ganhou no peito uma inscrição topográfica pois durante anos esteve sobre um pedestal à entrada de uma ponte muito importante.
Assim o vemos na praça de Cabeceiras de Basto um pouco antes de entrarmos no mosteiro de São Miguel, de que já falei.
Também a História moldou a face do mosteiro que já existia no tempo de D. Afonso Henriques, com os finais do Século XVII a darem-lhe uma imponente face barroca.
A igreja surpreende pelo todo grandioso, pelos dois órgãos de tubos, mas eu não consigo deixar de me fixar num pequeno detalhe que se salienta junto a um dos altares laterais. Reza assim uma inscrição (e reproduzo):
“Todos os Fieis de hum e outro sexo que verdadeiramente confessados e comungados vezitarem esta Igreja e nella o Altar da Senhora das Dores e pedirem pella paz entre os Princepes Christaons, Ganhão Indulgencia Plenaria desde as primas vésperas athe o sol posto no dia da sua festividade. E cada hum dos dias da sua novena cem dias de Indulgencia estando contritos. Assim o concedeo in perpetuum o Sm. PP Pio VI. Anno Domini 1787.”
Vá lá que a salvação não faz distinção de género mas de qualquer forma fixa-se mais na contrição e na prática religiosa, omitindo talvez o mais importante: “as obras valerosas”.
Sinais dos tempos?
Parece que não, e bem parece ser transversal à História este desvirtuar da realidade que faz heróis, santos e cria lendas a partir de gente e coisas tão demasiado simples.
Ainda hoje, de um corrupto se pode fazer um Homem livre, tão-só porque a liberdade é um bem vendável pela justiça e pode ser paga pelos que têm dinheiro; e os que roubaram têm habitualmente muito dinheiro quando o guardam bem guardado.
Que nos valha sempre o Espírito Santo…
E com o eco das lendas e dos santos espíritos contritos e peregrinos, regressámos ao poiso que mira ao Tâmega e ao Alvão, e ao quarto que tem dálias vermelhas a brilhar na varanda.
Tarde de leitura e conversa olhando as montanhas, com os meus pais a revisitarem as minhas “palavras” e a porem questões e a fazerem comentários acerca das mesmas.
Interessante porque sem filtros.
Sei que nunca serei herói, e santo então muito menos, por mais que reze, mas desta liberdade de ser eu já ninguém me priva; e liberdade com o benefício de ser totalmente gratuita.
Até amanhã… em Viana do Castelo.

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