O passeio nocturno das crianças invisíveis


Caminho por entre a aragem calma de um início de noite de primavera em Lisboa.
As casas com jardim, uma nespereira que galga os muros e nos oferece um tecto de frutos ao breve instante de três passos, a gente que corre, aquela outra que passeia os cães e brinca com eles nos relvados e nos passeios…
Estou algures por Alvalade e acabei de dar um abraço a um amigo que perdeu o pai; levo a sensação de que o choro dessa perda é feito por nós e pela consciência dos dias que jamais terão a presença de quem nos faz sentir crianças.
Continuo…
Tenho o carro estacionado na rua paralela à linha do comboio e enquanto caminho cruzo-me com uma família que chega a casa após o dia de trabalho e escola.
- Amanhã é o dia da mãe.
Grita o filho mais novo que vai às cavalitas do pai.
Cruzamo-nos e já não consigo escutar mais nada para lá do início da explicação do pai de que esse dia está para breve mas ainda não é amanhã.
Chego ao carro, ponho-o em marcha, no rádio toca um CD com a Orquestra Sinfónica de Londres a interpretar o “Here there and everywhere” dos Beatles…
Estou à porta do antigo cinema King e vem-me à cabeça “All the invisible children” com as histórias de Kusturica e amigos. Vi-o por aqui há alguns anos.
No carro já soa o “Yesterday”.
As imagens e as memórias de um homem que caminha só pela cidade.
Ontem?
Sempre.
Aqui, ali e em todos os lugares.
Sim…
Eu também sou uma das invisíveis crianças que viaja à boleia da alma de um homem.
Eternamente às cavalitas da heróica e eterna herança do pai, na busca incessante pelos dias da mãe e os beijos doces que eles contêm…
E com uma incrível tentação de colher aquela nêspera que passou tão perto da minha cabeça.

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