A liberdade, a traição à liberdade e o retirar da roupa


Desço a Avenida da Liberdade de braço dado com os meus pais em direcção ao Parque de Estacionamento do Parque Mayer, cruzando-nos com uma carrinha da polícia que faz a troca do agente que garante segurança à porta da Embaixada de Espanha; e vemos passar à nossa frente, uma metralhadora com um ar muito desagradavelmente sofisticado.
Já no interior do Parque, os meus pais recordam, teatro a teatro, as revistas que viam por ali quando vinham de visita a Lisboa, e invariavelmente acabam a falar de uma célebre, “Mostra-me a tua piscina”, a que assistiram no Capitólio num tempo em que a revolução de Abril tinha permitido retirar “oficialmente” a roupa das coristas, e ninguém levava a mal os borrifos de água que chegavam à plateia sempre que elas mergulhavam numa piscina montada no palco.
Já conheço a história que eles temperam de um misto de espanto, algum escândalo e muito riso, mas também já espero que eles a contem sempre que passamos por ali como “gravura” de um tempo em que Lisboa se “vestiu” de uma liberdade que dava mais sentido do que nunca ao nome da vizinha Avenida.
Montamo-nos agora no carro, faz frio e sabe bem o ar condicionado.
Saímos do Parque e seguimos até à Praça da Alegria onde um “stop” à entrada nos deixa ao lado de quatro homens que remexem em dois contentores do lixo abrindo sacos de plástico em busca de comida.
Faz frio agora dentro do carro e o riso rende-se ao silêncio.
A Alegria é apenas nome de Praça na traição à liberdade que voltou a tirar sentido ao nome da Avenida.
E da traição à liberdade nasceu este retirar da roupa e da dignidade da gente num espectáculo degradante para o qual não pagamos bilhete e para onde temos visão aberta em todas as esquinas da cidade.
As esquinas guardadas pelas metralhadoras e onde a dor nos borrifa sem pudor por entre a falta que nos faz uma revolução.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade