Olhar para trás e… sorrir ou “matar”


Parado num semáforo vermelho à entrada de Lisboa, eu dou conta que no carro à minha frente há um condutor que aproveita aqueles segundos de descanso para se virar e brincar com uma criança sentada na cadeira colocada no banco por detrás dele e da qual eu só consigo ver a parte superior do encosto.
Sorrio inevitavelmente pelo impacto da imagem que tenho à minha frente e os nossos olhares acabam por se cruzar, o meu e o do homem que reparando que eu estou assim a sorrir, me responde com o acenar de um olá.
O semáforo passa depois a verde, nós arrancamos em direcção aos destinos que nos colocaram ali naquela tarde da cidade; e no rádio do meu carro escuto Amália à conversa com João Ferreira Rosa antes de interpretar o fantástico “Foi Deus”.
Às vezes o nosso nervoso miudinho induzido pelo trânsito, o mau humor de horas com quilómetros de filas, “tropeça” assim em gestos que resultam em sorrisos e nos adoçam o humor feito de tantos pensamentos e tantas palavras com elevado grau de uma corrosiva acidez.
Com o benefício da ajuda de uma banda sonora de excelência.
Na missa das seis e meia na Basílica dos Mártires, ao Chiado, estou sentado no último banco e tenho ao meu lado um casal de jovens Japoneses com uma criança que terá uns dois anos e que aproveita o espaço entre bancos para circular de pai para mãe, e vice-versa, e aproveita a acústica do templo para emitir uns sons algo agudos mas para mim completamente imperceptíveis.
Ali à volta quase todos sorrimos para ela e para os seus progenitores, até para lhes passarmos algum conforto que atenue o desconforto que já manifestam pelo facto de a filha estar a aproveitar o momento para aquela performance num misto de canto e ginástica.
Todos, excepto uma senhora que sentada no banco imediatamente à frente e com um gorro de lã enfiado na cabeça já com aspecto de septuagenária, olha para trás com um olhar feroz, daqueles que matam os próprios e os que estão nas redondezas, que é o meu caso.
O padre fala do baptismo de Jesus e das águas do Rio Jordão, do Homem novo, mas a “velha” não o escuta e continua a olhar até ao momento em que eu resolvo intervir e lhe faço uma careta pondo a língua de fora.
Talvez a senhora tenha chegado a casa alguns minutos depois a falar de um psicopata e louco barbudo que lhe pôs a língua de fora na missa… Pois sim.
Às vezes as circunstâncias onde pensamos ir beber paz servem-nos “guerra” e uma desagradável sensação de desconforto.
Essa tão atractiva imprevisibilidade da vida.
E Deus, muito mais do que entre os altares barrocos de uma basílica, mora entre bancos de um automóvel parado num semáforo à entrada da cidade… e na voz de Amália, claro.

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