Memórias soltas a sobrevoar os Alpes

Jantava muitas vezes em sua casa uma canja que ela enchia de carne migada, porque estávamos a crescer. Depois levava-me a casa atravessando a Praça e parando sempre debaixo de uma laranjeira a que ela fingia encostar-se, mas que efectivamente abanava para que caísse um fruto; e para mim com dois anos as laranjeiras davam "drelin drelins".

Ao chegar a nossa casa dizia sempre "boa noute" e ainda tinha tempo para nos aninhar numa nesga de xaile e às vezes adormecer.

Quando havia festas nas redondezas íamos ver as "luzinhas", pelos meus anos dava-me uma nota de 20 escudos com a efígie do Santo António e foi ela quem me ofereceu o meu livro favorito de "Os cinco", o número 18, "Os cinco na Quinta Finniston"; nas feiras comprava-me torrão; um dia ofereceu-me um copo com a cara da Madalena Iglésias; e é também muito por mérito seu que eu sou Benfiquista tendo um pai adepto do Sporting.

Não se importava com o facto de não ter brincado com bonecas quando era pequena, tinha agora uma muito loura que às vezes levava com ela à cabeleireira para virem as duas penteadas.

A minha Tia Joaquina Rosa faria ontem 100 anos se não tivesse partido em Janeiro de 2002, muito pouco tempo depois de ter aprendido o valor dos Euros em "mil réis", como sempre se referia ao dinheiro.

Por essa altura já eu a levava a passear de carro porque essa era a cura de todos os seus males. Dizia sempre que entretida a ver a paisagem nem se lembrava das dores.

Brincava muito comigo e dizia que depois de morrer eu já não me iria recordar dela. Gosto de a contrariar e escrevo-lhe assim um beijo de parabéns a sobrevoar os Alpes. Mais perto do céu e quase a vê-la a comemorar os golos do Benfica em dia de aniversário.

A boneca está um pouco desgrenhada mas mora no meu quarto.



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